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quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

A barbárie e o seu ventre


Quando se evoca as agências de risco para intimar o Estado a cortar programas sociais e garantir o dos rentistas, que futuro estamos projetando para o Brasil?


Por Saul Leblon em Carta Maior

Coube ao editor de Carta Maior, Marco Aurélio Weissheimer, esticar o olhar para além do muro da conveniência que acomoda a questão prisional brasileira num círculo de ferro feito de superlotação, precariedade, guerra de facções e barbárie.

As cinco palavras selam a vida de 500 mil pessoas que subsistem do lado de dentro, mas não esclarecem o conjunto que interliga o seu destino ao dos demais 189,5 milhões que completam a sociedade do lado de fora.

São destinos entrelaçados, adverte  Weissheimer  na análise ‘O Presídio Central e a nossa vida do lado de fora’ (leia nesta pág).

Sua reflexão joga água fria no foco conservador que prefere  circunscrever o debate ao bordão da flacidez administrativa. Sobretudo quando essa dimensão real do problema – insuficiente  para entendê-lo, porém, e sobretudo para equacioná-lo— interliga a  barbárie a administrações associadas ao governo petista.

A série de 14 decapitações ocorridas na Penitenciária de Pedrinhas, no Maranhão, de onde facções comandam atentados que resultaram na morte de uma criança, no último fim de semana, enquadra-se nesse gênero.

Atribuir à exclusiva incompetência tucana o poder do PCC  em São Paulo pertence ao mesmo reducionismo, no caso de extração petista.

Não se avalize o diagnóstico protelatório segundo o qual, por ser um espelho da sociedade, as prisões somente serão dignas para redimir quem delinquiu, quando dignas forem todas as relações ordenadoras da sociedade.

É tudo verdade.

Mas o que distingui uma biblioteca de um projeto político é justamente a construção das linhas de passagem que fazem do presente o fiador premonitório de um futuro melhor que a mera reprodução do passado.

É nesse ponto que cabe arguir a honestidade da aflição conservadora com a sorte dos encarcerados brasileiros.

O que ela prescreve para a sociedade que está do lado de fora guarda coerência com o sentimento de urgência em relação aos que estão confinados?

Mais de 95% do contingente carcerário brasileiro vem das camadas pobres e excluídas da população; não há levantamentos oficiais  –e isso já diz muito sobre o sistema--  mas se calcula que 90% dos detentos voltem a delinquir, ao recuperarem a liberdade.

Mais de 40% da população carcerária está estocada em prisões provisórias, onde a lotação passa de cinco presos por vaga.

Convenhamos, quando se intima o Estado brasileiro a cortar a gastança (leia-se, programas sociais) para assegurar o juro dos rentistas; ou se sabota o reajuste do IPTU, sonegando-se R$ 800 milhões à educação, saúde e mobilidade urbana, como fez a coalisão tucano-plutocrática em SP, que futuro carcerário estamos projetando para o Brasil do século XXI?

 Um futuro de prisões em massa dos excluídos, talvez?

Há precedentes.

Negros representam 12,5% da população  total norte-americana; mas somam 40% da maior população carcerária da face da terra (2,5 milhões de presos).

Estamos falando de um milhão de negros trancafiados -- contingente superior ao da população escrava dos EUA no século XIX.

O desemprego é um vínculo esférico a unir a condição de negro a de detento nos EUA.

A proporção de negros desempregado (12,6%) é quase o dobro da de brancos (6,6%) ; há 50 anos a diferença era de quatro pontos.

A pobreza é outro elo: cerca de 10 milhões dos 41 milhões de negros norte-americanos vivem na pobreza.

Quando a mídia conservadora e os menestréis do tripé convocam agencias de risco a endossarem o veredito de um Brasil aos cacos, que pontes  estamos erguendo para impedir a cristalização de igual destino?

Recapitulemos.

Quando a tempestade neoliberal despencou, em 2007/2008, o Brasil resistiu ao naufrágio com boias que exigiram gastos fiscais da ordem de R$ 400 bilhões.

O país criou mais de 12 milhões de empregos desde 2007. A título de comparação: Grécia, Irlanda, Espanha e Portugal, coagidos a adotar o arrocho ortodoxo, viram desaparecer 15% de suas vagas desde 2012.

Encurralar a sucessão de 2014 em um ambiente contaminado pela represália iminente das agências de risco e dos investidores à ‘derrocada fiscal’ é o palanque daqueles que prometem fazer mais e melhor dobrando a aposta nos mandamentos do Consenso de Washington.

‘Não é que não deu certo; não foi bem aplicado’, já se afirma nas entrelinhas da emissão dominante.

Os que incitavam o governo a jogar o país ao mar em 2008,  agora retrucam que o custo de não tê-lo afogado na hora certa acarretou custos insustentáveis.

Colunistas isentos e economistas tucanos --de sabedoria comprovada pelos resultados obtidos em outras  crises, endossam o clamor pela eutanásia.

Recomenda-se vivamente beber a cota do dilúvio desdenhada irresponsavelmente de um gole só.

A indignação seletiva diante da barbárie nas prisões soa assim como uma nota fora do lugar no grande baile da restauração.

Ardilosa, talvez seja um predicado mais justo para a harmonia da orquestra que não desafina nunca.

O país precisa de investimento público e privado para adequar sua indústria e infraestrutura ao mercado de massa nascido nos últimos anos.

Nada que se harmonize do dia para a noite.

O crucial é erguer as linhas de passagem, pactuar  custos, definir prioridades, assumir ônus e  acordar prazos.

A se restituir a receita rentista, como exige o jogral incansável,  sobra uma pinguela estreita e oscilante para o futuro.

Um ano de juro da dívida pública equivale a 71 anos de merenda escolar diária para 47 milhões de crianças e adolescentes da rede pública brasileira.

É só uma ilustração.

Mas também é a síntese das proporções em jogo na arquitetura que será preciso escolher.

Na deles não cabe o Brasil.

Nem o que está fora das grandes -- quanto mais o que sangra dentro delas.