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sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Cientista político vê redução da pobreza como marca do lulismo


André Singer diz que ainda existem, porém, resistências à redução da desigualdade


Por R7.com



Com Lula no governo, o Brasil se tornou um país menos pobre, mas a desigualdade continuou a ser um de seus traços mais marcantes. Embora, segundo o governo, milhões de pessoas tenham saído da pobreza e entrado na classe média, as camadas mais ricas, como admite o próprio presidente, "nunca ganharam tanto dinheiro como agora".

O cientista político André Singer, professor da USP (Universidade de São Paulo), diz que houve "uma importante redução da pobreza no país", com melhoras na condição de vida de "milhões de pessoas de baixa e de baixíssima renda", e afirma que a desigualdade também diminuiu, mas em um ritmo mais lento.

- Provavelmente, porque uma parte dos ricos ficou mais rica, e isso se explica pelo fato de que a lucratividade das empresas foi muito grande nesse período, e os juros no Brasil continuam muito altos.

Para ele, que foi porta-voz do governo no primeiro mandato, encurtar o abismo que continua a separar pobres e ricos no Brasil é um desafio que ainda esbarra em obstáculos, como a resistência de alguns grupos e um conservadorismo que seria comum, se não a toda a sociedade brasileira, pelo menos a uma parte importante dela.

- Acho que o cenário que desenha não é muito favorável para a redução da desigualdade, porque isso depende de força política, de você ter uma correlação de forças muito favorável. Na democracia, para que mudanças dessa ordem sejam feitas, isso requer a constituição de largas maiorias, e eu não estou enxergando neste momento uma larga maioria em relação a essa questão.

Não por acaso, em seu último pronunciamento feito em cadeia nacional de rádio de TV, no dia 23 de dezembro, Lula exaltou, entre seus feitos, a diminuição da desigualdade "sem gerar conflito de classes".

Autor do artigo Raízes sociais e ideológicas do lulismo, em que discute o processo de realinhamento político do eleitorado brasileiro ocorrido em 2006, com o inédito deslocamento das camadas mais pobres na direção de Lula, Singer vê como os principais legados do presidente justamente os avanços obtidos em relação à pobreza e à desigualdade, "que são os determinantes estruturais da sociedade brasileira". O papel central desempenhado pelo Estado brasileiro na redistribuição da renda, com foco nas camadas mais pobres da população, aliado à manutenção da ordem, é a chave do projeto político que Singer chama de lulismo.

- Essa mudança teve uma consequência política de grandes dimensões, que é essa emergência do que eu chamo de lulismo, que a meu ver está provocando uma completa reordenação das forças políticas no Brasil.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida pelo professor ao R7.

R7 - Ao listar as conquistas dos últimos anos e seus feitos, o governo ressalta a criação de 15 milhões de empregos, a ascensão de mais de 30 milhões de pessoas à classe média e a saída de 28 milhões da pobreza. Os aeroportos e o comércio estão cheios de novos consumidores, mas o problema da desigualdade persiste e ainda há déficits em áreas importantes do serviço público, como saneamento básico, moradia, saúde e educação. Qual é, afinal, o país que o presidente Lula deixará para Dilma Rousseff?

André Singer - Uma das coisas que eu acho notável desse período é que ocorreram muitas mudanças. Muitas vezes, a extensão [dessas mudanças] pode ficar um pouco obscurecida pelo fato de que foi um governo moderado, que evitou a radicalização. Uma parte dessas mudanças ocorreu em relativo silêncio, e acho que, quando a gente vai olhar mais de perto, verifica uma variedade de transformações que dificultam reduzir tudo a uma imagem só. Houve de fato uma importante redução da pobreza no país. Sendo ainda mais preciso, eu diria que houve uma melhora na condição de vida de milhões de pessoas de baixa e de baixíssima renda, sobretudo de baixíssima renda. Por que estou dizendo isso? Porque o conceito de pobreza é discutível. O professor José Eli da Veiga, da USP, costuma dizer que, no combate à pobreza, é mais central saber se a pessoa passou a ter esgoto tratado do que apenas uma mudança na renda. Então, ainda existe uma discussão, que o Brasil tem de enfrentar, que é saber muito bem o que é pobreza e o que significa essa perspectiva de erradicação da pobreza. Acho que um dos grandes legados é deixar um país que parece que pode se colocar este objetivo, de erradicar a pobreza em um período tangível, de quatro, seis, oito, dez anos... Não tem tanta importância saber quanto tempo vai levar, mas só o fato de poder dizer "queremos e podemos erradicar a pobreza nessa próxima década" é um dos grandes legados. Mas, para isso, vamos ter de entender bem o que é a pobreza e o que estamos querendo dizer quando falamos em erradicá-la. Não é algo simples. Os dois mandatos do presidente Lula conseguiram melhorar as condições de vida dessa camada da população, que é a mais pobre, que é uma camada muito ampla. Dependendo do indicador que você buscar, vai chegar até próximo de metade da população. Estamos falando, então, de uma grande transformação.

R7 - E quanto à desigualdade?
Singer - A outra questão, que está associada a essa, mas que requer ainda mais discussão, é a desigualdade. Tivemos uma diminuição da pobreza relativamente acelerada, mas uma diminuição da desigualdade não tão acelerada. Eu discordo daqueles que acham que não está havendo redução da desigualdade no Brasil. Os indicadores que eu tenho usado, que são sobretudo do Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], indicam diminuição da desigualdade nas duas medidas que se costuma usar para isso, que são o índice Gini, que mede a diferença de renda entre os que ganham mais e os que ganham menos, e a chamada distribuição funcional da renda, que verifica a parcela da riqueza que é apropriada pelo capital, sob a forma de juros, lucro etc., e a parte da riqueza que é apropriada pelo trabalho. Também nesse aspecto, de distribuição funcional da renda, o Ipea aponta diminuição na desigualdade. Ou seja, continua havendo mais riqueza apropriada pelo capital, mas a proporção diminuiu, o que não acontecia desde 1995. Analiticamente, eu acho que o mais correto é indicar que está havendo diminuição da desigualdade, mas ela é mais lenta que a diminuição da pobreza. Por quê? Provavelmente, porque uma parte dos ricos ficou mais rica, e isso se explica pelo fato de que a lucratividade das empresas foi muito grande nesse período, e os juros no Brasil continuam muito altos. Então, se eu tivesse de escolher um aspecto como principal, eu escolheria esse, porque os problemas da pobreza e da desigualdade são os determinantes estruturais da sociedade brasileira, e essa mudança teve uma consequência política de grandes dimensões, que é essa emergência do que eu chamo de lulismo, que a meu ver está provocando uma completa reordenação das forças políticas no Brasil.

R7 - O senhor acha que essa discussão sobre o conceito de pobreza ocorre hoje de maneira satisfatória?

Singer - Relativamente pouco, menos do que seria necessário. Vou dar um exemplo. Essas pessoas que passaram a ter uma renda um pouco melhor, seja por meio do Bolsa Família, de outros programas do governo ou pelo acesso ao emprego, são pessoas que, provavelmente, continuam habitando aquilo que se costuma chamar de favelas. Essas pessoas saíram da pobreza? Ou ter uma condição de habitabilidade superior à que uma favela proporciona não seria um indicador necessário? Qual vai ser a cara do Brasil que os torcedores da Copa de 2014 vão encontrar? Se você for para o Rio de Janeiro, ou mesmo para São Paulo, eu tenho certeza de que, se as pessoas virem os grandes arranha-céus da Avenida Paulista, e depois as favelas, irão dizer "olha, esse é um país em que ainda há muita pobreza e muita desigualdade". Essa é a imagem que vai ficar. E eu me pergunto: nós vamos, daqui até 2014, poder propiciar às pessoas que moram em favelas uma condição de habitação digna ou vamos continuar tendo favelas? Isso é um exemplo claro da discussão sobre a pobreza, que está menos avançado do que eu acho que deveria estar. A presidente Dilma assumiu o compromisso de erradicação da pobreza, que é a meu ver extremamente positivo e só pode ser feito depois de terem sido dados os passos que o governo Lula deu. Mas eu acho que a sociedade deveria agora avançar nesse debate.

R7 - Como fazer para acelerar também o processo de redução da desigualdade?
Singer - É uma discussão mais complicada, porque envolve um certo tensionamento de classe. Acho que, com respeito à redução da pobreza, também não é fácil, mas eu acho que existe mais consenso. Não é casual que a coligação que apoiou a candidatura Dilma tenha acolhido o compromisso de erradicação da pobreza e da miséria, mas não aceitou a proposta, lançada pelo PT no quarto congresso, do imposto sobre grandes fortunas. O imposto seria uma maneira de atacar a questão da desigualdade. Acho que o cenário que desenha não é muito favorável para a redução da desigualdade, porque isso depende de força política, de você ter uma correlação de forças muito favorável. Na democracia, para que as mudanças dessa ordem sejam feitas, isso requer a constituição de largas maiorias, e eu não estou enxergando neste momento uma larga maioria em relação a essa questão. Existe um sociólogo de Minas, o Jessé Souza, da Universidade Federal de Juiz de Fora, que diz que o Brasil tem uma sociedade muito conservadora, e que esse conservadorismo é expresso pelo fato de que as pessoas convivem bem com situações de desigualdade muito grandes. Eu vou mais longe. Tenho a impressão de que, tanto na eleição de 2006 como na eleição de 2010, houve várias manifestações de uma intolerância por parte de setores da chamada classe média tradicional com relação a esse pequeno movimento - pequeno em face do tamanho da desigualdade, mas grande porque atingiu milhões de pessoas. Observa-se uma reação ao fato de que um contingente significativo de pessoas de baixíssima renda estão melhorando de vida. Você percebe as reclamações com relação à presença nos aeroportos de pessoas que nunca tinham viajado, à quantidade de carros nas ruas. São exemplos de uma multiplicidade de coisas que começam a acontecer quando você altera a estrutura social.

R7 - No artigo Raízes sociais e ideológicas do lulismo, a eleição de 2006 é tratada como o marco do reordenamento político do eleitorado brasileiro, em que o subproletariado adere pela primeira vez à candidatura de Lula. O senhor vê uma divisão dos oitos anos do atual governo em dois momentos distintos, separados justamente por aquela disputa?
Singer - Sim. Entre o primeiro e o segundo mandatos, com a eleição de 2006, o presidente ganhou uma autonomia que ele não tinha, e essa troca de base social aconteceu no ano de 2006. Ela estava se gestando antes, mas se condensou no ano de 2006. Eu acredito que essa é a explicação para o fato de que, no segundo mandato, houve uma certa inflexão à esquerda, por exemplo com o lançamento do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), com a flexibilização do gasto público, que estava muito contido, com o Banco Central tendendo a reduzir a taxa média de juros, embora ela continue muito alta. Depois, veio a crise, e aí se abre uma terceira etapa, porque diante da necessidade de agir rapidamente, o governo fez uso dos instrumentos de gestão econômica do Estado, sobretudo por meio dos bancos públicos, o que teve um grande efeito. Eu diria que, com isso, o Estado brasileiro recuperou a capacidade de induzir o investimento privado, recuperou a capacidade de conduzir a economia. Houve uma mudança importante. Uma coisa que foi se gestando e fica mais nítida no segundo mandato. Por ocasião da crise, ela completa a sua forma. Acho que, com as ações tomadas durante a crise, o projeto se completa.

R7 - O senhor acha que este projeto de conquista da nova base social foi pré-concebido ainda no início do governo Lula, e até antes dele, ou acabou por se gestar aos poucos?
Singer - Algumas coisas estão desde o início. A principal é o Bolsa Família, lançado em setembro de 2003. Havia, desde o início, uma percepção, uma decisão de promover políticas que favorecessem setores de baixíssima renda. Isso foi se desenvolvendo ao longo desses oito anos com etapas diferenciadas. Há uma primeira etapa até o final de 2005, em que as políticas de distribuição renda estão muito amarradas por uma política macroeconômica que dava continuidade ao que vinha do governo anterior. Na segunda e na terceira etapas, o projeto de distribuição de renda e combate à pobreza ganha espaço, fica mais robusto e menos contido pelos constrangimentos da política macroeconômica, mas sem ter modificado o modelo por completo. Tanto é que o Brasil continua tendo juros muito altos, o Banco Central manteve a sua autonomia operacional até o fim. Embora tenha havido flexibilização do gasto público, continua havendo um superavit primário relativamente importante, e o câmbio continua flutuante com uma apreciação do real que, segundo o ex-ministro Bresser Pereira, é da ordem de uns 40%. Dentro de um mesmo modelo, você tem essas etapas, mas eu acho que dá para identificar os pontos principais desde o começo.

R7 - O senhor diz que a política macroeconômica do primeiro mandato "amarrou", em certa medida, as políticas de distribuição de renda. Acha que o "conservadorismo" dos primeiros anos do governo Lula custou a perda de apoio de alguns grupos tradicionais de sua base?
Singer - Acho que, sobretudo a reforma da previdência, impactou muito setores de classe média que apoiavam o PT e se afastaram. Houve uma leitura de que o PT tinha se afastado desses setores, muitas vezes ligados ao funcionalismo público, que foram afetados pelo projeto encaminhado ao Congresso. Houve um custo político, sim.

R7 - Houve uma reaproximação ao longo do segundo mandato, quando deslancha o projeto de combate à pobreza e tentativa de redução da desigualdade?
Singer - Talvez seja precipitado fazer uma afirmação categórica, mas como eu acho que houve uma certa inflexão à esquerda ao longo do segundo mandato, já desde o início, com o PAC, depois com as medidas tomadas na crise, tenho a impressão de que isso amenizou um pouco o grau de crítica de setores de classe média, mais à esquerda, que tinham se afastado. Não creio que tenha sido suficiente para neutralizar o afastamento que ocorreu, mas acho que diminuiu um pouco. Acho que em 2010 a Dilma teve mais apoio na classe média, sobretudo no segundo turno, que o Lula teve em 2006.

R7 - Em seu artigo, o senhor afirma que, ao criar uma ponte com a base recém-conquistada dos mais pobres, o presidente Lula estabeleceu um "hiato" em relação ao PT. Isso ainda persiste?
Singer - Isso aconteceu em um primeiro momento, mas os dados estão mostrando que essa base, no começo puramente lulista, está pouco a pouco caminhando para o PT. O PT está se transformando. O PT de hoje não é mais o PT de antes de 2002, o PT hoje é um partido muito mais popular. Acho que esse hiato foi temporário, relativo mais aos anos de 2005 e 2006. O que veio depois é uma aproximação importante entre o lulismo e o PT, de tal forma que a gente pode até dizer que esse hiato tende a se fechar. Isso significa que o PT está mudando, é um novo partido que está surgindo, e esse novo partido tem muitas possibilidades e limites. Ele não é mais o partido radical que foi, não é mais um partido de classe, mas um partido que tem talvez a primeira possibilidade - não sei se é a primeira, mas a primeira desde 1964 - de [fazer com que] a esquerda fale com esse setor da população, que eu muitas vezes chamo de "povão". Essa capacidade de dialogar, de ser um partido ouvido pelo povão é uma coisa realmente muito especial. A eleição de 2010 começou a confirmar a minha hipótese. Os eleitores de baixíssima renda mudaram mesmo [ao votarem na Dilma], e isso mostra que a minha hipótese do realinhamento é possível. [Com a aproximação em relação ao PT] isso fica ainda mais forte, porque passa a ser carregado de um elemento de identificação partidária, que tem durabilidade.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Deputados paulistas aprovam “venda” de 25% dos leitos do SUS a convênios e particulares; paciente SUS é lesado



por Conceição Lemes
Por  55 a votos a 18 a Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou ontem (21/12/2010), o projeto de lei 45/10 que permite às Organizações Sociais (OS) venderem  até 25% dos serviços dos SUS, incluindo leitos hospitalares, a planos de saúde e particulares.
O projeto foi enviado à Assembleia Legislativa, em regime de urgência, pelo governador Alberto Goldman (PSBD). As bancadas do PSBD, DEM, PV, PPS, PSB,  PTB e PP votaram a favor do projeto, que obteve ainda alguns votos do PMDB, PRB e  PR. Votaram  contra PT,  PSOL, 1 do PR e 1 do PDT.
A nova lei das OS reduzirá mais o já precário atendimento hospitalar da população pobre”, denunciou ao Viomundo o deputado estadual Adriano Diogo (PT), da Comissão de Higiene e Saúde da Assembleia Legislativa. “É a expansão da ‘quarteirização’ dos serviços públicos de saúde no Estado de São Paulo.”
Para entender projeto, clique aqui. Paradescobrir como cada deputado estadual paulista votou, consulte a tabela abaixo. Os nomes em verde votaram a favor do projeto 45/10, do governador tucano.  Os escritos em vermelho, contra.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Para onde vai a Europa?

A resposta à crise proposta pelos mercados (desregulamentação do mercado de trabalho, deflação salarial, desemprego estrutural, cortes orçamentários e privatizações) é cada vez mais voraz. A União Europeia necessita de outra estratégia. Estamos assistindo a uma verdadeira guerra dos mercados contra os Estados. O que estamos vendo é uma contrarrevolução social “thatchero-reaganiana”. A questão é saber se as sociedades europeias vão aceitar isso. A partir de agora, o problema para a Europa já não é econômico, mas sim político. O artigo é de Sami Nair.


Por Sami Nair*

Depois da Grécia, a Irlanda. E depois, provavelmente, Portugal. Na sequência, não sabemos. O que é certo é que vários países estão ameaçados pelos mercados. A Espanha já está sob a alça da mira. Mas com o devido respeito pelos demais, o caso da Espanha é diferente. Trata-se da quarta economia da Europa (12% do PIB europeu) e é um peso pesado da política europeia. A dívida espanhola é três vezes superior à grega, seu déficit está, há dois anos, em torno de 10% do PIB, e o desemprego, que atinge todas as faixas de idade, está acima dos 20%. Se a Espanha recorrer ao fundo de resgate europeu, isso abriria também, de maneira inevitável, o caminho para ações especulativas contra Itália e França, o que significaria um giro decisivo para a Europa.


O paradoxo é que a estratégia europeia de saída da crise mundial (desregulamentação do mercado de trabalho, deflação salarial, desemprego estrutural, cortes orçamentários e privatizações) mostra os mercados cada vez mais vorazes. Daqui em diante, eles querem tudo. Essa estratégia, fundamentalmente recessiva, provoca um aumento legítimo das reivindicações sociais e políticas e dá lugar a perguntas que começam a ser formuladas espontaneamente pelas opiniões públicas. Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Economia, expressa assim esse estado de ânimo: “Para Atenas, Madri ou Lisboa, se colocará seriamente a questão de saber se interessa continuar o plano de austeridade imposto pelo FMI e por Bruxelas, ou se, ao contrário, é melhor a voltar a serem donos de suas políticas monetárias” (Le Monde, 23-24 de maio de 2010).


Ainda não chegamos a esse ponto, mas se não mudarmos as regras do jogo, a divisão da zona euro se tornará uma hipótese séria. Pois está claro que não poderemos resolver esta crise somente com medidas restritivas que atingem as populações mais expostas (classes médias e populares), e menos ainda com medidas técnicas vinculantes como as apoiadas por Alemanha e França para ativar o fundo de resgate. O presidente do Banco Central alemão, Axel Weber, deu a entender, durante uma visita recente a Paris, que os 750 bilhões de euros deveriam ser de todo modo aumentados se a Espanha recorresse ao fundo. Isso não deve ter agradado muito ao ministro alemão de Finanças, Wolfgang Schäuble, que, em uma entrevista ao Der Spiegel (08/11/2010), informou: durante a fase crítica, prolongação da vida dos créditos; se isso não bastar, os investidores privados deverão aceitar uma depreciação de seus empréstimos em troca de garantias para o restante. Isso é o mesmo que agitar a capa vermelha diante dos investidores privados.


Estes reagiram imediatamente, colocando a Irlanda de joelhos e cercando Portugal antes de assinalar os alvos na Bélgica e na Espanha. Quanto falta para que passem ao ataque? A margem de confiança que concedem aos diferentes países da zona euro já é insustentável: a Alemanha encontra compradores de seus bônus a uma média de 2,7%, enquanto que a Espanha os negocia no melhor dos casos em torno de 5% e Portugal a 6,7%. Os países endividados emprestam, pois, a taxas cada vez mais proibitivas e, se às vezes conseguem ganhar uns pontos, é só porque o Banco Central compra alguns bônus, coisa que não poderá durar muito tempo.


Na verdade, estamos assistindo a uma verdadeira guerra dos mercados contra os Estados. Quando a crise começou, apontei (“A vitória dos mercados financeiros”, El País, 08/05/2010) que os mercados iam submeter à prova a capacidade de resistência dos Estados e dos movimentos sociais, e quem em caso de uma debilidade comprovada dos europeus para definir uma estratégia progressista comum frente à crise, os investidores iam incrementar sua vantagem atacando frontalmente os Estados mais fracos. Objetivos: desregulamentar ainda mais os mercados internos e exigir mais privatizações. É exatamente o que está ocorrendo hoje. O que estamos vendo é uma contrarrevolução social “thatchero-reaganiana”. A questão é saber se as sociedades europeias vão aceitar isso. Neste contexto, o estatuto do euro é um teste definitivo: será, finalmente, posto a serviço da promoção de um modelo social sustentável ou se tornará o vetor da destruição dos restos do Estado de bem estar europeu?

A partir de agora, o problema para a Europa já não é econômico, mas sim político. Se as medidas técnicas adotadas não conseguirem resolver as dificuldades dos países europeus, veremos a divisão da zona do euro anunciada por Stiglitz? E qual será a forma dessa divisão? Uma zona reduzida a seis, sem a Espanha? Uma zona baseada no desacoplamento entre uma moeda única para o casal franco-alemão e alguns outros países, e uma moeda comum para o resto? Um retorno às moedas nacionais? E, neste caso, o que será do mercado único? Ouvimos todos os dias dirigentes políticos afirmarem que estas hipóteses são impensáveis: mas estamos seguros de que controlam os fluxos monetários? Não estão submetidos ao uníssono da Bolsa? Tudo pode ocorrer?


Na verdade, está em jogo o futuro do projeto europeu. As regras de funcionamento do euro previstas pelo Tratado de Lisboa entram cada vez mais em contradição flagrante com as divergências de desenvolvimento dos diversos países da zona. Nenhum governo se atreve, aparentemente, a colocar em dúvida os dogmas que sustentam o Pacto de Estabilidade, ainda que, na prática, ninguém os respeite. Mas, se queremos salvar o euro, é preciso flexibilizar essas regras. E talvez mudá-las. É vital estabelecer, daqui em diante, uma coordenação forte das políticas econômicas europeias, ainda que a Alemanha, tutora do Banco Central, não queira ouvir falar de um “governo econômico”. Aqui está o coração da batalha para a sobrevivência da zona euro e não nas medidas coercitivas previstas pelo acordo adotado em 28 de outubro, em Bruxelas.

Para relançar a Europa, essa coordenação deverá enfrentar pelo menos quatro grandes tarefas; 1) Uma proteção do espaço monetário europeu, regulando efetivamente, como foi previsto na reunião da UE de 18/05/10, os fundos de investimento alternativos e sobretudo os instrumentos ultraespeculativos (hedge funds, private equity, CDS). Isso supõe que se pode pedir explicações ao Reino Unido para que ponha fim à política desestabilizadora da City, principal praça especulativa mundial. 2) Uma mutualização das dívidas públicas europeias com a criação de “bônus europeus” para os países endividados que recorrerem ao fundo de resgate. Para evitar que aumente a desconfiança dos mercados, a Alemanha deve aceitar que a ativação do mecanismo de resgate seja, sob condições precisas, mecânico e não negociável a cada caso, como ocorre agora. 3) A realização de um empréstimo para financiar uma grande política pública europeia de crescimento, de criação de emprego e de pesquisa-inovação, o que supõe uma reforma dos estatutos do Banco Central. 4) Uma harmonização fiscal comum da zona do euro apoiada por um reforço dos fundos de coesão para os países em dificuldades.


Estas medidas teriam um efeito de arrasto prodigioso. Elas fariam os investidores refletir e criariam um impacto psicológico salvador para mobilizar os povos europeus. Na verdade, a escolha é simples: ou bem a Europa sairá desta crise reforçada e capaz de enfrentar a nova geopolítica da economia mundial opondo aos mercados um interesse geral europeu, baseado em estratégias cooperativas entre as nações europeias, ou bem, atolada em seus egoísmos nacionais, terminará ardendo em cinzas moribundas.


(*) Sami Nair é professor convidado da Universidade Pablo de Olavide, Sevilha. Publicado originalmente no jornal El País (16/12/2010)

Tradução: Katarina Peixoto

domingo, 12 de dezembro de 2010

Diálogo: Democratização da Comunicação, O desafio da democracia no século XXI



J-Aliança, Ipaz, ACE e Altercom CONVIDAM

 



Dia 14 de dezembro de 2010

Horário: 18h

Local: SESC VILA MARIANA Rua Pelotas, 141 sala A - 40 andar

 

Serão abordados os Direitos e as Responsabilidades para a Democratização da Comunicação.
O processo, as deliberações, as conquistas e a situação atual da CONFECOM um ano depois.

Informações do Pólo Europeu da Aliança Internacional de Jornalistas que está discutindo uma lei anti-trust para a Comunicação na Europa.

 

Presenças confirmadas

Prof. Lalo Leal - Eca USP, Bia Barbosa - Intervozes, Renato Rovai - Altercom

 

Venha ajudar a construir a mídia que queremos.

 

Uma articulação com a Frente Paulista PRÓ-CONFECOM, universidades e entidades da sociedade civil pela democratização da comunicação e da informação no Brasil.

 

Confirme sua presença e de sua instituição por este e-mail isis@educ-imagens.com.br ou deixe gravado na secretária eletrônica Imagens Educação e J-Aliança tel 11-31672575

 

 

Apoio Institucional: SESC SP

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Intervozes realiza debate sobre Wikileaks na próxima quarta feira (15/12)




O jogo é bruto. Os cabos foram capturados em benefício da transparência. De todos nós. Com isso, a verdade que trafega em sigilo foi exposta, na praça pública virtual da rede, e aqueles que ousaram exibir as entranhas da realpolitik tornaram-se objeto de desejo do império (Governo estadunidense, com suas bandeiras de cartão de crédito e megaoperadoras globais de serviços de entretenimento baseados na informação alheia). O que está em jogo?

O jogo é bruto. Começa a se forjar uma aliança contra o anonimato e a circulação livre de informação. Azeredo, Hadopi, Zapatero x Wikileaks. Temos o direito de acessar o entendimento dos governos sobre o que somos e o que fazemos. De conhecer a visão dos operadores do império que filtram e dirigem a ação do mais poderoso governo do Globo e também de seus satélites informacionais na Europa, na América, na Ásia, na Oceania, na África.

O jogo é bruto. O que jamais foi dito nem nunca deveria ser exibido está na nossa mão, em servidores espelhados e espalhados, que já não poderão tomar. O que está em jogo então?

Ato-debate “Wikileaks: o que está em jogo?”
Quarta, 15/12, às 19h

Com a participação de Natália Viana, jornalista parceira do Wikileaks no Brasil
Auditório Sindicato dos Engenheiros
Rua Genebra, 25 – São Paulo - Capital
(próximo à Câmara Municipal)

Os patrões querem intervir no Sindicato dos Sapateiros de Franca





Com informações do site do PCO


Em Franca, interior de São Paulo, maior pólo industrial do setor de calçados com mais de 20 mil trabalhadores na base, o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Calçados  está sofrendo um processo de intervenção.


No dia 31 de dezembro de 1994, um elemento chamado Fábio Cândido, que já havia sido presidente do sindicato, fundou outro sindicato, passando por cima do atual. O processo se estendeu desde então, porém há cerca de dois anos, a disputa ficou mais evidente.

O falso-sindicato fundado pelo pelego, ex-sindicalista, começou a ganhar incentivos dos patrões.



Em entrevista nesta edição de Causa Operária, Sebastião Ronaldo, presidente do sindicato dos trabalhadores, afirma que “até a mensalidade dos trabalhadores associados do nosso sindicato as empresas já não estão descontando mais”. Os patrões estão fazendo abertamente a propaganda do falso-sindicato, no site do sindicato patronal é dada a notícia da “disputa entre sindicatos”, na qual se afirma logo na primeira frase: “os cerca de 20 mil sapateiros de Franca podem ganhar um novo líder”.

O Ministério do Trabalho e Emprego publicou no Diário Oficial, em 21 de julho, a liberação da carta sindical para o falso-sindicato. A liberação é uma manobra da força sindical, que domina o ministério, junto com os empresários da cidade.

Não é à toa que os ataques dos patrões aumentaram de intensidade nos últimos dois anos. A necessidade dos industriais da cidade em atacar a organização sindical dos trabalhadores vem junto com a necessidade de atacar os trabalhadores também economicamente.

Para poder colocar em prática medidas para aumentar a exploração dos trabalhadores, os patrões estão buscando destruir o sindicato, que já existe há 70 anos. Segundo Sebastião Ronaldo “a medida que os empresários têm mais vontade de implantar, nos últimos anos, na categoria, é o Banco de Horas”.

A intervenção é uma maneira dos patrões de controlarem a organização dos trabalhadores, para facilitar a exploração e o abuso nas fábricas e setores de trabalho. No momento em que a crise econômica atinge em cheio os capitalistas, os patrões precisam exercer uma ditadura nos sindicatos para impedir que a luta dos trabalhadores resulte em menores lucros para as empresas.


É necessária a organização de um comitê nacional que reúna os sindicatos de todas as categorias para denunciar e lutar contra as tentativas dos patrões de intervir na organização dos trabalhadores. A defesa da autonomia dos sindicatos em relação aos patrões e ao Estado capitalista deve ser um princípio da luta dos trabalhadores, os únicos que devem decidir sobre os rumos de sua organização.





Obs. Neste sábado (11), um grande ato, junto à categoria, estará sendo realizado por diversas entidades de classe comprometidas com um sindicato legítimo e que de fato represente os interesses da categoria. Estaremos presentes nesta luta, em solidariedade de classe.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Em entrevista, fundador do Wikileaks nega acusações e diz que é fascinante ver os tentáculos da elite americana corrupta

Foto: Leon Natal/AFP

Por Opera Mundi

O fundador do site Wikileaks, Julian Assange, falou com exclusividade ao Opera Mundi nesta segunda-feira (06/12). Assange não escondeu a irritação com o congelamento de sua conta bancária na Suíça, por estar registrada em um endereço local, apesar de ele não morar mais no país europeu e com outras ações tomadas contra a organização desde o lançamento de documentos sigilosos de embaixadas dos Estados Unidos. 

Efe (28/10/2010) 
 
Assange: observar a reação dos EUA é tão importante quanto ver o material que publicamos

Ele se preparava para se apresentar à polícia britânica, o que aconteceu na manhã de hoje (07/12) em Londres. Assange é acusado de crimes sexuais na Suécia. A acusação não é clara, mas inclui a prática de sexo desprotegido com duas mulheres, na mesma época em dava uma palestra em Estocolmo. Desde o dia 18 de novembro, a justiça sueca expediu mandado de prisão com o objetivo de interrogá-lo por "suspeitas razoáveis de estupro, agressão sexual e coerção". O fundador do Wikileaks deve ser ouvido ainda hoje num tribunal de Westminster, na região central de Londres, onde será decidido se ele será extraditado à Suécia.

Nesse momento, quais acusações pesam sobre você?
São muitas as acusações. A mais séria é que eu e o nosso pessoal praticamos espionagem contra os EUA. Isso é falso. Também a famosa alegação de "estupro" na Suécia. Ela é falsa e vai acabar se extinguindo quando os fatos reais vierem à tona, mas até lá está sendo usada para atacar nossa reputação.

Sobre essa acusação de espionagem, há algum processo judicial correndo?
Não. É uma investigação formal envolvendo os diretores do FBI, da CIA e o advogado-geral norte-americano. A Austrália, meu país, também está conduzindo uma investigação do mesmo tipo - em que se junta todo o governo - e ao mesmo tempo estão asssessorando os EUA. Uma da fontes alegadas para essa investigação, Bradley Manning [militar acusado de ser a fonte do Wikileaks], está preso em confinamento solitário em uma cela na prisão no estado da Virginia, nos EUA. Ele pode pegar até 52 anos de prisão se for condenado por todas as acusações, que incluem espionagem.

Leia também:
Por dentro do Wikileaks: a democracia passa pela transparência radical
Stédile: EUA são os maiores terroristas do planeta 
Wikileaks: documento diz que MST e movimentos sociais são obstáculos a lei antiterrorismo no Brasil  
Wikileaks: documentos revelam que Itamaraty é considerado inimigo da política dos EUA 


Qual a diferença entre o que faz o Wikileaks e espionagem?
O Wikileaks recebe material de "whistle-blowers" (pessoas que denunciam algo errado nas organizações onde trabalham) e jornalistas e os entrega ao público. Nos acusar de espionagem quer dizer que nós teriamos que trabalhar ativamente para adquirir o material e o repassar a um estrangeiro.

No caso da Suécia, o que as mulheres alegam?
Elas dizem que houve sexo consensual. O caso chegou a ser arquivado por 12 horas quando a procuradora-geral em Estocolmo, Eva Finne, leu os depoimentos. Depois foi reaberto, após uma articulação política. Todo esse caso é bastante perturbador. Agora, eles acabaram de congelar minha conta em um banco na Suíça, nosso fundo para pagar minha defesa.

Com base em quê?
Eles estão alegando que eu os coloco em risco. Mas não têm nada que sugira isso, e de qualquer forma isso é falso.

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E qual é a sua opinião sobre o congelamento de transferêcias de dinheiro pela empresa PayPal, e o fato de que a Amazon retirou o site do ar? Como você vê essas ações?
É fascinante ver os tentáculos da elite norte-americana corrupta. De certo modo, observar essa reação é tão importante quanto ver o material que publicamos. A Paypal e a Amazon congelaram nossas contas por razões políticas. Com o Paypal, 70 mil euros foram congelados. Com o nosso fundo de defesa, cerca de 31 mil euros.

O que eles alegam?
Eles dizem que estamos fazendo "atividades ilegais", o que é, claro, uma inverdade. Mas estão ecoando as acusações de Hillary Clinton [secretária de Estado norte-americana] sobre como publicamos documentos que podem causar transtornos aos EUA. Mesmo assim, o líder do comitê de segurança nacional no Senado disse com muito orgulho que ele havia ligado para a Amazon e exigido o fechamento no site.

O que o Wikileaks está fazendo para se defender do congelamento das doações?  
Nós perdemos 100 mil euros somente nesta semana como resultado do congelamento dos pagamentos. Temos outras contas em bancos - na Islândia e Suécia, por exemplo, que o público pode usar. Estão em um site. Também aceitamos cartões de crédito.

O que mais o Wikileaks está fazendo para se defender?
Nós estamos contando com a diversidade e o apoio de boas pessoas. Temos mais de 350 sites pelo mundo que reproduzem nosso conteúdo. Precisamos disso mais do que nunca. 

*Natália Viana é jornalista e colaboradora do Opera Mundi


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terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Lula, o PT e as classes sociais



As classes médias tornarão a apoiar o PT ao convencerem-se de que a qualificação dos serviços públicos acarreta resultados positivos para todos e de que a luta pela igualdade não pretende suprimir a liberdade
Por Luiz Marques*
Em uma importante análise recém publicada, cujos dados foram incorporados à presente reflexão, o cientista político André Singer (Raízes sociais e ideológicas do lulismo, Revista Novos Estudos, nov/2010) debruça-se sobre a evolução do fenômeno que denominou de “lulismo”. O lulismo consistiria no amparo proveniente dos setores empobrecidos da população ao projeto político representado por Luís Inácio Lula da Silva. Segundo Singer, o próprio PT pende fortemente nessa direção depois de perder o respaldo das classes médias. Ações distributivas do Estado, aliadas à manutenção da estabilidade do país, teriam levado o eleitorado com proventos limitados a dois salários mínimos a migrar para o campo de apoio do ex-retirante nordestino.
A prova dos nove seria a vitória sobre Alckmin, em 2006, com a votação massiva das faixas de baixíssima renda familiar, o “subproletariado”: por definição, os que se inserem no mercado de trabalho sem uma remuneração que assegure a reprodução de suas energias. Se dependesse dos eleitores com rendimento acima de dez salários o petista haveria soçobrado. Note-se que em 1989 a hegemonia exercida pelo PT deu-se “às avessas”, isto é, entre os favorecidos em lugar dos desfavorecidos. A “gente humilde”, reverenciada nos versos poéticos de Vinícius de Moraes e Chico Buarque, tendeu para o histriônico “caçador de marajás”. Coisa que suscitou em Lula uma avaliação normativa que acenava a vontade de ser feliz: “Temos de ir para a periferia, onde estão milhões de pessoas que se deixam conduzir pela promessa fácil de casa e comida”.
Na verdade, adverte Singer, a dita “promessa fácil” era o desaguadouro dos preconceitos instalados na base da pirâmide social. Esta, nos anos 80, opunha-se aos movimentos sociais que ameaçassem desestabilizar a ordem estabelecida e aceitava a intervenção das tropas militares para dissolver as greves (41,6% contra 8,6% dos que recebiam acima de vinte salários mínimos). Os subproletários não se portavam como sujeitos políticos autônomos, inclinando-se a forjar uma identidade pela ótica dos de cima. Em 1994 e em 1998 a tendência repetiu-se, com Fernando Henrique Cardoso mobilizando os trabalhadores sem registro formal ou experiência sindical. Os eleitores lulistas tinham então níveis superiores de escolarização e concentravam-se em bolsões urbanizados e industrializados, no Sul e no Sudeste. Em 2002, quando o prócer da esperança chegou à presidência, a votação também não exprimiu uma polarização do tipo pobres versus ricos.
Mudança de paradigma – O ano da virada é 2006. Frustrada com as denúncias de corrupção do “mensalão”, iniciadas em maio e arrastadas até fins de 2005, as classes médias debandaram para a ponta oposta do espectro ideológico enquanto a sustentação do presidente deslocava-se para as camadas antes refratárias à esquerda. O deslocamento começou com o Bolsa Família em 2003, e avançou com a superação da conjuntura recessiva e o sentimento de que o poder de consumo de produtos tradicionais (alimentos, materiais de construção civil) e novos (celulares, DVDs, passagens aéreas) descortinava melhores condições de vida aos de baixo. Isso evitou o naufrágio político de Lula, apesar da deserção das classes médias e das manchetes sensacionalistas.
Explica-se. Próximo ao pleito, o BF atendia 11,4 milhões de famílias e seu orçamento saltara de R$ 570 milhões para R$ 7,5 bilhões. Com o que Lula obteve 60% dos votos no Nordeste no primeiro turno e 33% no Sul. A diferença correspondeu ao investimento no BF, três vezes maior no Nordeste, aniquilando o conservadorismo dos grotões. Entre os votantes pela primeira vez em Lula ponteavam as mulheres de baixa renda, justo o alvo do programa. Outras variáveis incidiram no processo evidentemente.
A cesta básica que subiu 8,5% e 10,4% em Porto Alegre e São Paulo, locais em que perdeu, e em Recife e Fortaleza minguou para 4% e -3%, capitais de estados em que venceu com 82% e 75% da apuração. A valorização do salário mínimo que dinamizou a economia das cidades de menor IDH e estimulou as vendas do varejo. A expansão do financiamento popular, o crédito consignado, os empréstimos à agricultura familiar, o microcrédito, a eletrificação rural, as cisternas no semi-árido, a bancarização de quem jamais usou cartão nos caixas, etc.
Singer lembra ainda o Benefício de Prestação Continuada que repassa um salário aos idosos ou portadores de necessidades especiais com renda per capita na família até ¼ do salário mínimo. Com o Estatuto do Idoso, aliás, a idade para o recebimento baixou de 67 para 65 anos. O BPC contemplava 2,4 milhões de cidadãos no ano emblemático, com indicativo de que 62% dos que integravam algum plano governamental votariam em Lula.
Em suma, as políticas sociais implementadas no primeiro mandato contribuíram no combate à pobreza, reduziram as taxas de desemprego de 10,2% em 2002 para 8,3% em 2005, baixaram a inflação de 12,5% para 5,6% e cimentaram a posição carismática do operário que reelegeu-se para o ápice da representação política, com uma mudança de paradigma no suporte sócio-regional. O PT prosseguiu influente nos centros urbanos e industriais, com uma bancada de deputados federais concentrada em municípios desenvolvidos. Lula (e Dilma Rousseff, em 2010) tem hoje enorme audiência no Norte e Nordeste, mas o PT arregimenta parlamentares para o Congresso Nacional no Sul e Sudeste majoritariamente.
A liderança de Lula – Alguns analistas interpretam de modo negativo o significado da liderança de Lula. Acusam-no de despolitizar o tema da pobreza e da desigualdade, por não desconstruir o modelo explorador vigente nas relações entre o capital e o trabalho. A marca do lulismo seria a desideologização do antagonismo subjacente ao sistema de dominação capitalista. A permanência de pilares da política macroeconômica oriundas do governo antecessor (metas de inflação, câmbio flutuante, superávit primário nas contas públicas e independência do Banco Central) revigora a tese da direitização condensada no lulismo. O que as ácidas condenações não captam é que a adesão dos setores de baixíssima renda decorreu em boa proporção do clima de harmonia e estabilidade. No imaginário do subproletariado viradas bruscas arriscariam os direitos conquistados a duras penas.
A prudência de Lula, anunciada na Carta aos Brasileiros (em que comprometia-se a manter os contratos) e ilustrada na adoção da Lei de Responsabilidade Fiscal (que inibe investimentos dos entes federados), pavimentou a transição de 35 milhões de corações e mentes para a “classe C” fazendo da necessidade conjuntural uma virtude histórica. Para tanto, foram minadas as principais concessões de FHC ao Consenso de Washington: os juros altos, a liberdade de movimento dos capitais e a contenção dos gastos públicos. Se o percurso de Lula para esconjurar as reminiscências do neoliberalismo foi sinuoso e estampou contradições caricatas ao cotejar-se a gestão de Meireles no BC e Mantega no Ministério da Fazenda, em compensação, abriu uma promissora agenda de inclusão social. Mérito fabuloso, considerando que 50% da força de trabalho está na informalidade e sobrevive com aportes precários. Sem mencionar que, nesse período, o Estado tornou-se um ícone contra toda manifestação de desigualdade social, étnica ou de gênero encarnando os ideais de uma autêntica República.
O que realimenta as críticas é o fato de que a linguagem classista das origens do PT, aos moldes do slogan “trabalhador não vota em patrão”, anteriormente dirigida às camadas intermediárias a exemplo dos operários industriais, dos servidores públicos e dos estudantes universitários perdeu a capacidade de interpelação na sociedade. Os partidos situados à extrema esquerda que insistem em bater na tecla do classismo não conseguem crescer na preferência das maiorias e têm dificuldades de se colocar no cenário político. A absorção e a vocalização de um discurso com ênfase republicana e igualitária, somado ao apelo à democracia participativa, é o que garante ao PT uma interlocução renovada com a cidadania e uma presença forte em distintas órbitas representativas da federação. Para muitos, tal configura um abandono estratégico do socialismo e um insulto à utopia, quando significa tão somente um ajuste tático em face das mutações da realidade política social e econômica em um contexto de afirmação dos procedimentos institucionais.
Um passo atrás, dois à frente – A ideia de modernização do capitalismo, que encantou o senso comum e a grande mídia ao tempo que os carros nacionais eram comparados às carroças de tração animal, não acha mais eco nas multidões que estão vivenciando uma inédita mobilidade social. O antidesenvolvimentismo que teve como expoente FHC fracassou. Nada havia de moderno em crescer como rabo de cavalo, privatizar o patrimônio público com dinheiro do BNDES e inserir-se de maneira subalterna e entreguista na globalização a um custo socialmente perverso. A inépcia da direita em adotar um discurso em consonância com o estágio porque passa a nação ficou clara nessa disputa eleitoral na performance errática e obscurantista de José Serra que, atônito, procurou alçar temáticas de foro íntimo ao centro do debate político. Terminou na vergonhosa pantomima da bolinha de papel.
O que ora baliza a atuação dos atores políticos, contornando a radicalidade do enfrentamento classe contra classe, são as propostas de universalização de direitos, as quais serão robustecidas já em 2011 graças aos substanciais recursos advindos da aprovação do novo marco regulatório do Pré-Sal. Com a transferência dos fundos públicos excedentes “para os lázaros” e “as filhas dos lázaros”, para evocar a metáfora de uma crônica de Paulo Mendes Campos, e a socialização do poder político através de mecanismos decisórios abertos à participação da sociedade civil, a democracia brasileira adquire enfim uma dimensão social e ativa. Trata-se de um movimento capaz de transformar as políticas de governo em curso em políticas de Estado enraizadas na consciência do povo. Aquilo que aparentava ser um recuo conceitual são passos firmes e seguros adiante, iluminados pela lanterna acesa da justiça distributiva.
Aprofundar esse empenho civilizatório implica na reinvenção do Brasil e da própria América Latina, com a criação e a generalização de valores não-mercantis para o exercício da cidadania e a democratização dos canais de relacionamento entre os governados e os governantes. Pesquisas divulgadas após a emancipadora vitória de Dilma informam que 81% da população acha que o país está no rumo certo, no Nordeste a sensação beira os 90% (Vox Populi, dez/2010). Nesse ambiente otimista, é de prever-se a consolidação da lealdade política dos contingentes de baixíssima renda que carregam sobre os ombros o projeto sintetizado por Lula e, com a cabeça, sufragaram a primeira mulher à presidência. As classes médias tornarão a apoiar o PT ao convencerem-se de que a qualificação dos serviços públicos acarreta resultados positivos para todos e de que a luta pela igualdade não pretende suprimir a liberdade. Encerro remetendo ao princípio: a leitura do estudo feito por Singer.
*Luiz Marques é professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).