contador de visitas

sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Cientista político vê redução da pobreza como marca do lulismo


André Singer diz que ainda existem, porém, resistências à redução da desigualdade


Por R7.com



Com Lula no governo, o Brasil se tornou um país menos pobre, mas a desigualdade continuou a ser um de seus traços mais marcantes. Embora, segundo o governo, milhões de pessoas tenham saído da pobreza e entrado na classe média, as camadas mais ricas, como admite o próprio presidente, "nunca ganharam tanto dinheiro como agora".

O cientista político André Singer, professor da USP (Universidade de São Paulo), diz que houve "uma importante redução da pobreza no país", com melhoras na condição de vida de "milhões de pessoas de baixa e de baixíssima renda", e afirma que a desigualdade também diminuiu, mas em um ritmo mais lento.

- Provavelmente, porque uma parte dos ricos ficou mais rica, e isso se explica pelo fato de que a lucratividade das empresas foi muito grande nesse período, e os juros no Brasil continuam muito altos.

Para ele, que foi porta-voz do governo no primeiro mandato, encurtar o abismo que continua a separar pobres e ricos no Brasil é um desafio que ainda esbarra em obstáculos, como a resistência de alguns grupos e um conservadorismo que seria comum, se não a toda a sociedade brasileira, pelo menos a uma parte importante dela.

- Acho que o cenário que desenha não é muito favorável para a redução da desigualdade, porque isso depende de força política, de você ter uma correlação de forças muito favorável. Na democracia, para que mudanças dessa ordem sejam feitas, isso requer a constituição de largas maiorias, e eu não estou enxergando neste momento uma larga maioria em relação a essa questão.

Não por acaso, em seu último pronunciamento feito em cadeia nacional de rádio de TV, no dia 23 de dezembro, Lula exaltou, entre seus feitos, a diminuição da desigualdade "sem gerar conflito de classes".

Autor do artigo Raízes sociais e ideológicas do lulismo, em que discute o processo de realinhamento político do eleitorado brasileiro ocorrido em 2006, com o inédito deslocamento das camadas mais pobres na direção de Lula, Singer vê como os principais legados do presidente justamente os avanços obtidos em relação à pobreza e à desigualdade, "que são os determinantes estruturais da sociedade brasileira". O papel central desempenhado pelo Estado brasileiro na redistribuição da renda, com foco nas camadas mais pobres da população, aliado à manutenção da ordem, é a chave do projeto político que Singer chama de lulismo.

- Essa mudança teve uma consequência política de grandes dimensões, que é essa emergência do que eu chamo de lulismo, que a meu ver está provocando uma completa reordenação das forças políticas no Brasil.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida pelo professor ao R7.

R7 - Ao listar as conquistas dos últimos anos e seus feitos, o governo ressalta a criação de 15 milhões de empregos, a ascensão de mais de 30 milhões de pessoas à classe média e a saída de 28 milhões da pobreza. Os aeroportos e o comércio estão cheios de novos consumidores, mas o problema da desigualdade persiste e ainda há déficits em áreas importantes do serviço público, como saneamento básico, moradia, saúde e educação. Qual é, afinal, o país que o presidente Lula deixará para Dilma Rousseff?

André Singer - Uma das coisas que eu acho notável desse período é que ocorreram muitas mudanças. Muitas vezes, a extensão [dessas mudanças] pode ficar um pouco obscurecida pelo fato de que foi um governo moderado, que evitou a radicalização. Uma parte dessas mudanças ocorreu em relativo silêncio, e acho que, quando a gente vai olhar mais de perto, verifica uma variedade de transformações que dificultam reduzir tudo a uma imagem só. Houve de fato uma importante redução da pobreza no país. Sendo ainda mais preciso, eu diria que houve uma melhora na condição de vida de milhões de pessoas de baixa e de baixíssima renda, sobretudo de baixíssima renda. Por que estou dizendo isso? Porque o conceito de pobreza é discutível. O professor José Eli da Veiga, da USP, costuma dizer que, no combate à pobreza, é mais central saber se a pessoa passou a ter esgoto tratado do que apenas uma mudança na renda. Então, ainda existe uma discussão, que o Brasil tem de enfrentar, que é saber muito bem o que é pobreza e o que significa essa perspectiva de erradicação da pobreza. Acho que um dos grandes legados é deixar um país que parece que pode se colocar este objetivo, de erradicar a pobreza em um período tangível, de quatro, seis, oito, dez anos... Não tem tanta importância saber quanto tempo vai levar, mas só o fato de poder dizer "queremos e podemos erradicar a pobreza nessa próxima década" é um dos grandes legados. Mas, para isso, vamos ter de entender bem o que é a pobreza e o que estamos querendo dizer quando falamos em erradicá-la. Não é algo simples. Os dois mandatos do presidente Lula conseguiram melhorar as condições de vida dessa camada da população, que é a mais pobre, que é uma camada muito ampla. Dependendo do indicador que você buscar, vai chegar até próximo de metade da população. Estamos falando, então, de uma grande transformação.

R7 - E quanto à desigualdade?
Singer - A outra questão, que está associada a essa, mas que requer ainda mais discussão, é a desigualdade. Tivemos uma diminuição da pobreza relativamente acelerada, mas uma diminuição da desigualdade não tão acelerada. Eu discordo daqueles que acham que não está havendo redução da desigualdade no Brasil. Os indicadores que eu tenho usado, que são sobretudo do Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], indicam diminuição da desigualdade nas duas medidas que se costuma usar para isso, que são o índice Gini, que mede a diferença de renda entre os que ganham mais e os que ganham menos, e a chamada distribuição funcional da renda, que verifica a parcela da riqueza que é apropriada pelo capital, sob a forma de juros, lucro etc., e a parte da riqueza que é apropriada pelo trabalho. Também nesse aspecto, de distribuição funcional da renda, o Ipea aponta diminuição na desigualdade. Ou seja, continua havendo mais riqueza apropriada pelo capital, mas a proporção diminuiu, o que não acontecia desde 1995. Analiticamente, eu acho que o mais correto é indicar que está havendo diminuição da desigualdade, mas ela é mais lenta que a diminuição da pobreza. Por quê? Provavelmente, porque uma parte dos ricos ficou mais rica, e isso se explica pelo fato de que a lucratividade das empresas foi muito grande nesse período, e os juros no Brasil continuam muito altos. Então, se eu tivesse de escolher um aspecto como principal, eu escolheria esse, porque os problemas da pobreza e da desigualdade são os determinantes estruturais da sociedade brasileira, e essa mudança teve uma consequência política de grandes dimensões, que é essa emergência do que eu chamo de lulismo, que a meu ver está provocando uma completa reordenação das forças políticas no Brasil.

R7 - O senhor acha que essa discussão sobre o conceito de pobreza ocorre hoje de maneira satisfatória?

Singer - Relativamente pouco, menos do que seria necessário. Vou dar um exemplo. Essas pessoas que passaram a ter uma renda um pouco melhor, seja por meio do Bolsa Família, de outros programas do governo ou pelo acesso ao emprego, são pessoas que, provavelmente, continuam habitando aquilo que se costuma chamar de favelas. Essas pessoas saíram da pobreza? Ou ter uma condição de habitabilidade superior à que uma favela proporciona não seria um indicador necessário? Qual vai ser a cara do Brasil que os torcedores da Copa de 2014 vão encontrar? Se você for para o Rio de Janeiro, ou mesmo para São Paulo, eu tenho certeza de que, se as pessoas virem os grandes arranha-céus da Avenida Paulista, e depois as favelas, irão dizer "olha, esse é um país em que ainda há muita pobreza e muita desigualdade". Essa é a imagem que vai ficar. E eu me pergunto: nós vamos, daqui até 2014, poder propiciar às pessoas que moram em favelas uma condição de habitação digna ou vamos continuar tendo favelas? Isso é um exemplo claro da discussão sobre a pobreza, que está menos avançado do que eu acho que deveria estar. A presidente Dilma assumiu o compromisso de erradicação da pobreza, que é a meu ver extremamente positivo e só pode ser feito depois de terem sido dados os passos que o governo Lula deu. Mas eu acho que a sociedade deveria agora avançar nesse debate.

R7 - Como fazer para acelerar também o processo de redução da desigualdade?
Singer - É uma discussão mais complicada, porque envolve um certo tensionamento de classe. Acho que, com respeito à redução da pobreza, também não é fácil, mas eu acho que existe mais consenso. Não é casual que a coligação que apoiou a candidatura Dilma tenha acolhido o compromisso de erradicação da pobreza e da miséria, mas não aceitou a proposta, lançada pelo PT no quarto congresso, do imposto sobre grandes fortunas. O imposto seria uma maneira de atacar a questão da desigualdade. Acho que o cenário que desenha não é muito favorável para a redução da desigualdade, porque isso depende de força política, de você ter uma correlação de forças muito favorável. Na democracia, para que as mudanças dessa ordem sejam feitas, isso requer a constituição de largas maiorias, e eu não estou enxergando neste momento uma larga maioria em relação a essa questão. Existe um sociólogo de Minas, o Jessé Souza, da Universidade Federal de Juiz de Fora, que diz que o Brasil tem uma sociedade muito conservadora, e que esse conservadorismo é expresso pelo fato de que as pessoas convivem bem com situações de desigualdade muito grandes. Eu vou mais longe. Tenho a impressão de que, tanto na eleição de 2006 como na eleição de 2010, houve várias manifestações de uma intolerância por parte de setores da chamada classe média tradicional com relação a esse pequeno movimento - pequeno em face do tamanho da desigualdade, mas grande porque atingiu milhões de pessoas. Observa-se uma reação ao fato de que um contingente significativo de pessoas de baixíssima renda estão melhorando de vida. Você percebe as reclamações com relação à presença nos aeroportos de pessoas que nunca tinham viajado, à quantidade de carros nas ruas. São exemplos de uma multiplicidade de coisas que começam a acontecer quando você altera a estrutura social.

R7 - No artigo Raízes sociais e ideológicas do lulismo, a eleição de 2006 é tratada como o marco do reordenamento político do eleitorado brasileiro, em que o subproletariado adere pela primeira vez à candidatura de Lula. O senhor vê uma divisão dos oitos anos do atual governo em dois momentos distintos, separados justamente por aquela disputa?
Singer - Sim. Entre o primeiro e o segundo mandatos, com a eleição de 2006, o presidente ganhou uma autonomia que ele não tinha, e essa troca de base social aconteceu no ano de 2006. Ela estava se gestando antes, mas se condensou no ano de 2006. Eu acredito que essa é a explicação para o fato de que, no segundo mandato, houve uma certa inflexão à esquerda, por exemplo com o lançamento do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), com a flexibilização do gasto público, que estava muito contido, com o Banco Central tendendo a reduzir a taxa média de juros, embora ela continue muito alta. Depois, veio a crise, e aí se abre uma terceira etapa, porque diante da necessidade de agir rapidamente, o governo fez uso dos instrumentos de gestão econômica do Estado, sobretudo por meio dos bancos públicos, o que teve um grande efeito. Eu diria que, com isso, o Estado brasileiro recuperou a capacidade de induzir o investimento privado, recuperou a capacidade de conduzir a economia. Houve uma mudança importante. Uma coisa que foi se gestando e fica mais nítida no segundo mandato. Por ocasião da crise, ela completa a sua forma. Acho que, com as ações tomadas durante a crise, o projeto se completa.

R7 - O senhor acha que este projeto de conquista da nova base social foi pré-concebido ainda no início do governo Lula, e até antes dele, ou acabou por se gestar aos poucos?
Singer - Algumas coisas estão desde o início. A principal é o Bolsa Família, lançado em setembro de 2003. Havia, desde o início, uma percepção, uma decisão de promover políticas que favorecessem setores de baixíssima renda. Isso foi se desenvolvendo ao longo desses oito anos com etapas diferenciadas. Há uma primeira etapa até o final de 2005, em que as políticas de distribuição renda estão muito amarradas por uma política macroeconômica que dava continuidade ao que vinha do governo anterior. Na segunda e na terceira etapas, o projeto de distribuição de renda e combate à pobreza ganha espaço, fica mais robusto e menos contido pelos constrangimentos da política macroeconômica, mas sem ter modificado o modelo por completo. Tanto é que o Brasil continua tendo juros muito altos, o Banco Central manteve a sua autonomia operacional até o fim. Embora tenha havido flexibilização do gasto público, continua havendo um superavit primário relativamente importante, e o câmbio continua flutuante com uma apreciação do real que, segundo o ex-ministro Bresser Pereira, é da ordem de uns 40%. Dentro de um mesmo modelo, você tem essas etapas, mas eu acho que dá para identificar os pontos principais desde o começo.

R7 - O senhor diz que a política macroeconômica do primeiro mandato "amarrou", em certa medida, as políticas de distribuição de renda. Acha que o "conservadorismo" dos primeiros anos do governo Lula custou a perda de apoio de alguns grupos tradicionais de sua base?
Singer - Acho que, sobretudo a reforma da previdência, impactou muito setores de classe média que apoiavam o PT e se afastaram. Houve uma leitura de que o PT tinha se afastado desses setores, muitas vezes ligados ao funcionalismo público, que foram afetados pelo projeto encaminhado ao Congresso. Houve um custo político, sim.

R7 - Houve uma reaproximação ao longo do segundo mandato, quando deslancha o projeto de combate à pobreza e tentativa de redução da desigualdade?
Singer - Talvez seja precipitado fazer uma afirmação categórica, mas como eu acho que houve uma certa inflexão à esquerda ao longo do segundo mandato, já desde o início, com o PAC, depois com as medidas tomadas na crise, tenho a impressão de que isso amenizou um pouco o grau de crítica de setores de classe média, mais à esquerda, que tinham se afastado. Não creio que tenha sido suficiente para neutralizar o afastamento que ocorreu, mas acho que diminuiu um pouco. Acho que em 2010 a Dilma teve mais apoio na classe média, sobretudo no segundo turno, que o Lula teve em 2006.

R7 - Em seu artigo, o senhor afirma que, ao criar uma ponte com a base recém-conquistada dos mais pobres, o presidente Lula estabeleceu um "hiato" em relação ao PT. Isso ainda persiste?
Singer - Isso aconteceu em um primeiro momento, mas os dados estão mostrando que essa base, no começo puramente lulista, está pouco a pouco caminhando para o PT. O PT está se transformando. O PT de hoje não é mais o PT de antes de 2002, o PT hoje é um partido muito mais popular. Acho que esse hiato foi temporário, relativo mais aos anos de 2005 e 2006. O que veio depois é uma aproximação importante entre o lulismo e o PT, de tal forma que a gente pode até dizer que esse hiato tende a se fechar. Isso significa que o PT está mudando, é um novo partido que está surgindo, e esse novo partido tem muitas possibilidades e limites. Ele não é mais o partido radical que foi, não é mais um partido de classe, mas um partido que tem talvez a primeira possibilidade - não sei se é a primeira, mas a primeira desde 1964 - de [fazer com que] a esquerda fale com esse setor da população, que eu muitas vezes chamo de "povão". Essa capacidade de dialogar, de ser um partido ouvido pelo povão é uma coisa realmente muito especial. A eleição de 2010 começou a confirmar a minha hipótese. Os eleitores de baixíssima renda mudaram mesmo [ao votarem na Dilma], e isso mostra que a minha hipótese do realinhamento é possível. [Com a aproximação em relação ao PT] isso fica ainda mais forte, porque passa a ser carregado de um elemento de identificação partidária, que tem durabilidade.

Nenhum comentário: