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terça-feira, 9 de dezembro de 2008

A propaganda ideológica de todos os dias


Telenovelas da Rede Globo incorporam em suas tramas discursos contra temas pautados pelo esforço progressista de segmentos populares da sociedade

Por Rafael Villas Boas

A produção televisiva de ficção no Brasil, sobretudo do mercado de telenovelas da rede Globo, tem incorporado com freqüência em seus produtos a contra-propaganda de bandeiras dos movimentos sociais da esquerda brasileira, haja vista o caso da crítica à política de cotas para negros nas instituições de ensino superior, em “Duas caras”, e a defesa aberta das empresas de celulose em “A Favorita”, ambas telenovelas do assim chamado “horário nobre”, espaço de maior índice de audiência, em que o preço do anúncio dos comerciais atinge a taxa mais alta.

Seria errôneo chamar esse procedimento de merchandising, porque não se trata simplesmente do anúncio de um produto em meio a trama da narrativa ficcional. Sequer cabe o termo merchandising social, que propõe a publicização de práticas civilizatórias, e o combate ao preconceito e à discriminação em algumas situações específicas, como aos portadores de necessidades especiais, inserindo na trama personagens que tenham algum tipo de necessidade, como a Síndrome de Down.

O que está em jogo é a prática de propaganda ideológica inserida na trama das telenovelas, com o objetivo de difundir uma opinião sobre temas da agenda política que foram pautados pelo esforço progressista de segmentos populares da sociedade, à revelia dos interesses reacionários dos quais as grandes emissoras são porta-vozes.

A conta-gotas
A tática tem lá sua eficiência, pois diferentemente do caráter formal dos telejornais, em que a forma notícia supostamente retrata questões da realidade, com a pretensa finalidade de informar a população, no caso da ficção a propaganda ideológica é diluída na trama narrativa, pegando os telespectadores no momento em que se encontram desarmados dos filtros críticos que possam ter ao assistirem aos telejornais.

No limite, o hábito cultural de consumir telenovelas, com a disciplina de horas diárias dedicadas ao gesto da entrega ao entretenimento, é também o momento de introjeção inconsciente do ponto de vista da classe dominante sobre assuntos estratégicos para manutenção de seu projeto de poder.

No último capítulo de “Duas Caras”, uma família multirracial posa feliz para a fotografia que pretende retratar a efetivação do modelo ideal de integração racial no Brasil: a retomada anacrônica do mito da democracia racial. Para uma telenovela que concentrou pesada artilharia na legitimidade da política de cotas para negros, e na legitimação da privatização do ensino superior brasileiro, com direito até a personagem negro que escondia sua condição de riqueza para, supostamente, numa manobra populista, falar em nome dos negros pobres, a fotografia parecia expressar com certo sarcasmo, o júbilo com a batalha vencida no campo da ficção.

Entretanto, o poder da emissora, para além das fronteiras da ficção, não corresponde à suas expectativas. Pelo contrário, na vida real, a despeito das manipulações dos telejornais e telenovelas, assistimos dia a dia ao aumento de universidades que encampam as ações afirmativas de cotas para negros, indígenas e egressos de escolas públicas, e ao fortalecimento das instituições públicas de ensino superior – o que certamente incomoda aos empresários que lidam com a educação como uma mercadoria a ser consumida, entre outras, e representam fatia nada irrelevante dos anunciantes das emissoras.

A favor de quem?
“A Favorita” não representa novidade no procedimento de incorporação temática nas telenovelas de questões polêmicas candentes na “sociedade brasileira”. Para ficarmos com exemplos de nosso interesse, em “O Rei do Gado” (1996), a luta pela reforma agrária foi o mote do inverossímil enredo dramático que teve na trama um romance entre uma sem-terra e um latifundiário. E em “Duas caras”, a crescente organização dos movimentos de trabalhadores sem-teto e de desempregados foi representada como uma luta manobrada por oportunistas e autoritários líderes comunitários.

Em “A Favorita”, uma empresa de celulose é o centro aglutinador dos diversos núcleos de personagens da telenovela, distribuídos entre a família proprietária e seus agregados, e os diversos focos de núcleos dos trabalhadores, habitantes da pequena cidade que tem como seu principal motor econômico a indústria. Um dos focos de conflito da trama é a resistência que um personagem oferece para vender suas terras para a empresa, que já comprara todas as terras ao redor de sua propriedade, pois pretende estender o monocultivo de eucalipto, visando ao fornecimento de madeira para a produção de papel.

A disparidade do conflito real entre transnacionais de celulose e os povos indígenas, quilombolas e camponeses que antes habitavam as terras que foram transformadas em área de plantio de eucalipto e a figuração do conflito na ficção chama a atenção: o personagem antagonista é um cantor e compositor famoso em décadas passadas, de estilo hippie, que acredita que seu grande amor, a mãe de seu filho, foi abduzida por extraterrestres. É um dos personagens mais estereotipados da trama, que “vive no mundo da lua”. A resistência que ele oferece à expansão das terras da indústria parece ser mais um devaneio entre outros, um capricho de artista rico, ou extremismo ecológico. Suas ações cômicas e seus argumentos pitorescos são refutados na trama com argumentos aparentemente incontestáveis, que atestam a excelência das práticas de desenvolvimento sustentável da empresa, até a importância social da mesma para a cidade. Esses argumentos são proferidos não apenas pelos personagens que detêm o capital da empresa, mas também por aqueles bons trabalhadores do núcleo pobre, que se orgulham por trabalhar numa empresa que está entre as maiores do mundo nesse ramo.

Ao que tudo indica, a Rede Globo aprendeu com um tiro no pé que dera com a novela “O Rei do Gado”. Por mais dramática e manipulada que fosse aquela trama, ela cumpriu o papel de divulgar amplamente a luta pela reforma agrária e os movimentos sociais que levantam essa bandeira, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Em “A Favorita”, nenhum sujeito político coletivo, nenhum movimento social que se contrapõe com freqüência, e de diversas formas, à prática predatória das empresas de celulose apareceu. Pelo que sugere a trama, ser contra o progresso garantido pelo avanço da empresa seria, no mínimo, um ato romântico e idealista, ou “coisa de louco”. A tática de combate por meio da ficção implica a supressão do ponto de vista das classes populares, por meio de seus movimentos organizados.

Como a mercadoria telenovela chega a todas as casas que têm um aparelho televisor, para a militância dos movimentos sociais, saber apontar as contradições e manipulações presentes nesse formato ficcional pode ser bastante útil nos trabalhos de articulação com a sociedade e no trabalho de base para massificação dos movimentos, pois, como a referência do assunto é comum, é possível entrar na discussão pela desconstrução do ponto de vista dominante, ao mesmo tempo em que informamos e debatemos os passos estratégicos para a construção do projeto popular para o país.

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