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quinta-feira, 31 de março de 2011

Reação a Bolsonaro mostra o Brasil cansado da infâmia



Por Hamilton Octavio de Souza

O Deputado Bolsonaro todo mundo conhece. É quadro da direita mais atrasada do Brasil, o sujeito que ainda acredita na truculência da Ditadura Militar, na truculência da polícia contra pobres e negros, na truculência dos pais na criação dos filhos. Está fora da realidade e do projeto de construção de um mundo melhor.

Há muito tempo que o Deputado Bolsonaro escandaliza o Brasil. Já fez discursos defendendo a volta do regime militar, ataca sistematicamente os direitos humanos, é contra a Comissão da Verdade, vive posando de macho polemista nos programas de TV e rádio que especulam e sensacionalizam as causas LGBT, das mulheres, dos negros e dos pobres em geral.

Ele segue a política do bate-bate, numa época em que boa parte da humanidade tenta vencer a guerra, os regimes ditatoriais, os métodos mediáveis, o obscurantismo e a ignorância. Tentamos, todos nós, entrar na era do politicamente correto, no tratamento correto das questões ambientais, das questões de gênero, das questões de orientação sexual. Queremos superar os traumas preconceituosos produzidos pelas religiões, pela estrutura familiar antiquada e pela sociedade fascista, e pelos interesses econômicos quando predominam sobre as relações humanas.

A última fala do Deputado Bolsonaro, no CQC, causou imediata reação da sociedade. Principalmente a juventude (ainda bem!) ficou revoltada com a discriminação manifestada em concessão pública de radiodifusão. Muita gente, desta vez, incorporou o nível de tolerância zero para demonstrar indignação com o desrespeito público do parlamentar.

O que ele falou, diferentemente do que a mídia costuma induzir como brincadeira e piada não colaram como algo engraçado, cônico, divertido. Ao contrário, a fala inadequada do Deputado Bolsonaro foi imediatamente interpretada como uma ofensa ao conjunto da sociedade, ainda mais de uma sociedade que tenta assumir a sua maioria negra, parda, mestiça, multirracial – como sendo uma virtude a ser festejada na face do Planeta.

Se o programa de TV e o medieval Deputado Bolsonaro imaginaram produzir algum tipo de humor televisivo e marqueteiro, caíram do cavalo, pois no entendimento de muitos, o que aconteceu não pode ser jogado na vala comum do humor, já que prevalece o sentimento-consciência de que esse tipo de manifestação não pode mais ser aceito – sob pretexto algum.

As pessoas se encheram das piadas contra pobres, negros, trabalhadores, gays, lésbicas – e todos aqueles cidadãos e cidadãs que lutam para um tratamento igual e afirmativo na nossa sociedade, não abrem sorrisos para manifestações preconceituosas. Isso é evidente, e está cada vez mais ficando claro. Os meios de comunicação precisam colocar os seus sensores no povo, para perceber que essas manifestações como a do Deputado Bolsonaro não têm mais – felizmente – respaldo social.

Que o referido deputado seja devidamente acionado pelo Ministério Público, seja punido por seu partido (PP-RJ) e seja duplamente punido na Câmara dos Deputados. Que aprenda, de uma vez por todas, a respeitar o povo brasileiro.


Hamilton Octavio de Souza é jornalista e professor da PUC-SP.

terça-feira, 29 de março de 2011

Inside Job e as entranhas do capitalismo




Por Romualdo Pessoa
Empresário e formado em matemática, ele expõe com rara clareza as entranhas do processo que culminou com a crise econômica que teve seu ápice em 2008, e da qual o mundo ainda não se recuperou. Seu trabalho brilhante merece ser visto por todos os que procuram compreender o real funcionamento do sistema capitalista na atual etapa de financeirização.
Tudo começa e gira em torno da chamada desregulamentação. Em 2008, quando estourou a crise, disse a meus alunos que que certamente ouviriam muito essa palavra, dali em diante. Desde o final do ano anterior, (e mesmo bem antes, como mostra agora Inside Job) era perceptível aos analistas independentes, mais críticos do comportamento neoliberal, que se aproximava uma grave crise imobiliária nos EUA. Percebi que ela colocaria em xeque toda a política neoliberal, que procura retirar do Estado os mecanismos que permitiriam controlar a movimentação financeira mundo afora e os enormes lucros astronômicos do capital que se dedica a ela.
Desregulamentação, enfim, veio a ser todo o processo político e econômico que possibilitou uma enorme virada na economia mundial e deu início ao que passou a se chamar “Globalização”. Partia-se do princípio que era necessário livrar a economia de todas as amarras que eram impostas pelo Estado e garantir ampla liberdade para o comércio mundial. Não se percebeu no primeiro momento que essa liberdade reivindicada tinha como alvo principal a movimentação do capital financeiro pelo mundo. Claro, também para as mercadorias. Mas a mercadoria mais importante a ser “libertada” era o dinheiro, permitindo aos especuladores “inventar” múltiplas fórmulas capazes de multiplicar seus rendimentos.
As finanças globais foram, assim, transformadas num verdadeiro cassino. Analistas e acadêmicos das famosas escolas de administração, economia e finanças dos EUA tornaram-se consultores e assumiram cargos elevados da alta administração das finanças estadunidenses. Já nos anos 1980, François Chesnais(2) e Perry Anderson(3), críticos da forma como se dava a globalização financeira, acusavam: tanto o termo “globalização” quanto a idealização das políticas neoliberais haviam sido criados nas escolas de administração dos Estados Unidos.
A crise do socialismo havia aberto caminho para um discurso que demonizava as políticas públicas de cunho social. Sustentava-se, então, que o capitalismo sem freios era a única alternativa capaz de solucionar os problemas do mundo a assegurar a prosperidade para todos. A chave estava em garantir liberdade àqueles que visavam investir seus capitais em rentáveis negócios, de forma a espalhar desenvolvimento por toda a parte. O discurso foi eficiente: a maioria das pessoas comprou o argumento – inclusive os mais pobres. O que não se via é que o poder estatal não desaparecera: fora transferido para instituições como FMI, Banco Mundial e outras “governanças” globais que se tornaram mais fortes que os Estados nacionais.
Deslumbrada pelo papel que a propaganda e ou marketing passavam a ter, a “grande” mídia de mercado manipulava e escondia a verdadeira face do que estava se espalhando pelo mundo. Poucos, muitos poucos, ganhavam milhões em todo esse processo. É um detalhe a ser observado quando se assiste Inside Job: as cifras citadas são de valores grandiosos, a mostrar que a desregulamentação abriu as portas do “inferno” para todos os tipos de gananciosos e criminosos financeiros (ironicamente Fergusson começa o documentário dizendo que chegou a mais de 20 trilhões de dólares a soma gasta para cobrir as quebradeiras do sistema financeiro estadunidense e mundial).
O documentário, aliás, também ajuda a enxergar como o poder político determina os mecanismos que garantem a acumulação de riqueza nas mãos de uma ínfima minoria. As entrevistas, algumas delas feitas com personagens que estiveram no centro da crise, chegam a ser hilárias.  Ferguson derruba todos os argumentos que são apresentados pelos envolvidos a partir de uma competente pesquisa, com informações sobre a participação de cada – aberta ou dissimulada – na gestação do terremoto financeiro.
Tudo isso à custa do crescimento da pobreza no mundo, principalmente em países que abandonaram todos os tipos de investimentos produtivos, a partir da pressão para que o Estado se afastasse de determinados setores da economia. Em várias partes do mundo, esta retirada desmantelou, por exemplo, a produção agrícola, resultando hoje em crise da produção de alimentos e o encarecimento dos mesmos, afetando principalmente a população mais pobre. Seria cômico, se não fosse trágico.
A chegada da crise a todos os continentes (com menor impacto nas nações da periferia que se apoiaram em um mercado interno em expansão), evidenciou o estrago feito pelas políticas neoliberais. Mas isso não significa que os agentes responsáveis pela quebradeira, pela ação gananciosa que ampliou a pobreza inclusive em países como os Estados Unidos, tenham sido punidos. Ao contrário: o documentário mostra que muitos deles ocupam hoje cargos importantes na estrutura administrativa daquele país. Foram indicados por Barack Obama, ilusoriamente visto como a saída para o caos econômico que atingiu os EUA.
O que deduzimos de Inside Job é que a maioria dos seres humanos não vivem no sistema descrito pelo filme. Vivem sob ele. Quero dizer que a enorme maioria das pessoas vive no submundo do que se pode caracterizar como capitalismo. Algo já dito, de outra maneira, pelo historiador francês Fernand Braudel, para quem o capitalismo deveria ser dividido em uma economia superior, onde se faz o capital, e uma economia inferior, onde praticamente as pessoas trabalham e produzem para sobreviverem. Aí se encontram-se as grandes maiorias. O impressionante é a quantidade daqueles que, vivendo nesse submundo, são submetidos a uma verdadeira lavagem cerebral. Acreditam poder atingir a riqueza daqueles que controlam os meios pelos quais ela é conquistada. Talvez esta ganância obsessiva explique por que há tanta corrupção no mundo.
Mas é evidente que creio ser possível superar os abusos do capitalismo. Pode-se mesclar algumas coisas que são positivas, com a necessidade de se distribuir a riqueza de forma mais democrática. E o Estado é essencial para isso. Não sou pessimista. Jogo no time dos que acreditam que um outro mundo é possível!
PS: Sugiro aos interessados em Inside Job que assistam também outros dois documentários: Enron, os mais espertos da sala e Corporation. Se tiverem tempo, vejam também Capitalismo, uma história de amor, de Michael Moore. A partir daí será difícil entender porque tantos defendem que o capitalismo é o melhor sistema para a humanidade.
1Segundo Luis Gonzaga Beluzzo, Inside Job é uma expressão idiomática e não caberia uma tradução literal

Fonte: http://www.outraspalavras.net/

quinta-feira, 24 de março de 2011

O efeito dominó da revolta em Jirau



por Leonardo Sakamoto
Conversei com jornalistas que foram cobrir a situação causada pelos protestos no canteiro de obras da hidrelétrica de Jirau, em Rondônia. Quase todos foram com uma pauta sobre vandalismo, mas voltaram com um número maior de matérias tratando de graves problemas trabalhistas e de sério desrespeito aos direitos fundamentais. Isso foi percebido pelos leitores/ouvintes/telespectadores que acompanharam o caso com atenção nos últimos dias, a ponto de refletir nas cartas e e-mail recebidos em redações. As primeiras notícias trataram de quebra-quebra, depois começou a aparecer o pano de fundo.
Não estou querendo justificar a destruição da farmácia que atendia os trabalhadores, por exemplo. Mas é impossível entender todo o contexto se não for explicado que a dita atuava praticamente em um esquema de “barracão”, fazendo com que trabalhadores contraíssem dívidas ilegais. Jornalismo tem que tratar de causas e consequências.
Mesmo passando o necessário filtro nos rumores e boatos que correm de um lado para o outro nessas horas quentes, ainda assim o que sobra já dá para arrepiar o cabelo. Denúncias de maus tratos, condições degradantes, violência física. Coisas que acionistas de grandes empresas não gostam de ver exposto por aí e, por isso, são repetidas vezes negadas pelos serviços de relações públicas ao longo de anos.
O que aconteceu em Jirau tem um mérito: escancarou a caixa preta das grandes obras ligadas ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), trazendo à tona o que vem sendo alardeado há tempos por movimentos sociais e organizações da sociedade civil: que esses canteiros se tornaram máquinas de moer gente – noves fora os impactos ambientais e nas populações locais.
E olha que não estou nem recorrendo à minha cantilena e falando do caso de trabalho escravo em Jirau em 2009, quando 38 pessoas aliciadas no Maranhão foram resgatados enquanto trabalhavam para a Construtora BS, que prestava serviço ao consórcio responsável pela construção da usina. Mas sim de um processo estrutural causado pela pressa em terminar e gerar energia, pelos cortes de gastos e pela necessidade de manter a lucratividade do empreendimento. Tudo com o apoio de dinheiro público, ou seja, eu, tu, nós.
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) afirmou que vai manter os repasses do empréstimo à obra. A descoberta dos problemas questiona os critérios de financiamento da instituição. Pois o começo de tudo não foi uma briga entre operários e motoristas ou problemas com comida e alojamentos. Aquilo era uma complexa bomba-relógio de insatisfação pronta para detonar, com mais pessoas trabalhando que recursos físicos e humanos para mantê-las. O banco não é fiscal, mas também não pode ficar em uma posição de só caixa registradora.
Além dos problemas encontrados pelo Ministério do Trabalho e Emprego ao longo do tempo, os ministérios públicos Federal e Estadual de Rondônia impetraram uma ação civil pública contra o estado, o município de Porto Velho, a União, o Ibama, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e a Energia Sustentável do Brasil (ESBR, empresa responsável pelas obras), por descumprimento de condicionantes nas áreas de saúde, educação, transporte e segurança. Ou seja, o que não faltava era informação à disposição (por isso mesmo assusta ver algumas matérias que foram ao ar na TV com um grau incrível de desconhecimento da realidade, mostrando que tem gente em redações não sabendo usar nem o Google na pesquisa).
O BNDES deveria ter tido mais cuidado e monitorado isso, lembrando que a bomba soltou vários avisos de fumaça, nos últimos anos, antes de explodir. Se tivesse feito isso, provavelmente estaria suspendendo agora os repasses ou aplicando novos condicionantes. As usinas hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, em Rondônia, têm R$ 13,3 bilhões de financiamento do BNDES.
Agora, os responsáveis pelas obras falam na adoção patamares mínimos. O mais engraçado é que esses patamares já existem e se chamam legislação trabalhista. É só seguir o que está lá, sem tirar nem por. Mas, aí, a obra ficaria cara e inviável, não é mesmo?
E tem mais um probleminha aí no meio: a terceirização tresloucada. A quantidade relativa de empregados das empresas diretamente responsáveis por uma grande obra é pequena em comparação aos empregados das subcontratadas. Um consórcio contrata o Tio Patinhas para tocar um serviço, que subcontrata o Mickey, que subcontrata o Pateta, que deixa tudo na mão de três pequenas empreiteiras do Zezinho, do Huguinho e do Luizinho. Às vezes, o Zezinho não tem as mínimas condições de assumir turmas de trabalhadores, mas toca o barco mesmo assim. Aí, sob pressão de prazo e custos, aparecem as bizarrices. Depois, quando tudo acontece, Pateta, Mickey, Tio Patinhas e o consórcio dizem que o problema não é com eles. Ninguém quer pagar o pato – literalmente.
Enquanto isso, muita gente que assiste ao que está acontecendo pela TV fica achando que os trabalhadores que tocaram o terror fizeram isso por prazer. Terror é a situação em que estava um mundaréu de gente, provisoriamente alojada no Sesi de Porto Velho, sob um calor do cão, e com a “escolta” da polícia para que não saíssem e criassem tumulto na cidade. Não é campo de concentração porque não estava a céu aberto.
São bons esses momentos em que a sociedade regurjita sua entranhas, serve para pessoas perceberem que não estão sozinhas, leva ao reconhecimento da própria condição e pode gerar um efeito dominó. O UOL mostrou que protestos ocorreram em outros lugares (Além de Jirau, revolta de operários afeta outras duas grandes obras do PAC). Trouxe aqui que em Estreito (MA), as críticas também subiram o tom.
Imagina se todos esses protestos iniciais levassem a pipocar outros pelo país, em um fenômenos semelhante ao que está acontecendo no mundo árabe?
Vamos levantar os podres que estão por trás do “milagre do crescimento” e ver se ele se sustenta após ter sido colocado ordem na casa. Isso se não jogarem tudo para baixo do tapete em nome da ordem pública e dos financiamentos de campanha. De novo.

terça-feira, 15 de março de 2011

Capitalismo: uma história sem amor



Novo filme do cineasta norte-americano Michael Moore surpreende mais pela exposição de cenas e situações que parecem ter desaparecido do mundo real, especialmente dos países ricos, do que pela crítica aos efeitos desastrosos do capital financeiro na crise de 2008. Mas, ainda assim, um documentário que vale a pena ser visto.

Por Ricardo Alvarez
A liberdade ampla, geral e irrestrita de circulação do capital financeiro provocou uma forte e aguda crise no mundo ao final desta década, este é um debate que ganha corpo e adeptos, inclusive dentre o grupo dos neoliberais convictos. Desde que Bush, Obama e seus parceiros na Europa estenderam as mãos ao grande capital em crise, oferecendo ajuda financeira em escala bilionária com recursos públicos, tornou-se, no mínimo desconfortável, defender as “maravilhas do capital sem controle” e da não regulação estatal da economia, mesmo para os apologistas do mercado livre.
Há uma linha de pensamento que indica uma crise do capitalismo que se arrasta desde os anos 70, quando a combinação Fordismo e Estado do Bem Estar Social, chegou ao seu estado de esgotamento final. Tal associação se apoiava num tripé com funções e papéis definidos: produção em larga escala, Estado provedor de infra-estrutura e crédito, instituições reguladoras da economia, e classe trabalhadora com um poder de compra (especialmente nos países centrais) capaz de escoar a produção em série, e assim se garantir, ainda que de forma crítica, o ciclo da produção e do consumo e a viabilização do lucro, evidentemente.
A crise de acumulação delineada já no início dos anos 1970, fez reforçar o pensamento liberal, travestido de neoliberal, em contraposição a esta lógica de funcionamento do processo de acumulação de capital, predominante desde a Segunda Guerra Mundial. Os falcões da economia se antecipavam sobre os falcões da política. O fim do padrão ouro-dólar (início dos anos 70) substituído pelo novo lastro apoiado no mercado de moedas já apontava para uma política monetária de Estado fragilizado e profundamente instável.
Faltavam os próceres que levariam à frente o novo ideário, em contraponto ao Estado interventor. Ronald Reagan e Margareth Thatcher foram os titãs a descortinar um mundo novo a partir dos anos 80. A idéia de liberdade de mercado atraia, pois era embrulhada no mesmo jornal das liberdades pessoais. Quem seria contra? Seguiu-se uma onde de privatizações, redução dos impostos aos mais ricos, desregulamentação aos mercados financeiros, redução das tarifas comerciais, destruição intensiva dos direitos sociais e trabalhistas, enfim, garantia de maior fluidez dos capitais e de ampliação da margem de lucro. Tudo sob o discurso ideológico de que a crise fora causada por “Estados provedores demais”. Evidentemente, o papel da grande mídia foi o de sustentar as medidas tomadas pelos chefes de Estado e pelas grandes corporações, valorizando a espoliação das empresas, territórios e exploração de pessoas como caminho único e necessário.
A queda do muro de Berlim e a derrocada do bloco do socialismo real contribuíram, sobremaneira, para o fortalecimento do discurso de que o que é público não funciona.
É neste contexto que se apresenta o documentário “Capitalismo: uma história de amor” de Moore. Sua crítica a este novo padrão de acumulação de capital tem o mérito de trazer para as telas do cinema um assunto que normalmente se restringe a pequenos círculos de discussão, difícil inclusive de ser trabalhado visualmente na linguagem cinematográfica.
Mas o que mais chama a atenção na película é a exibição de imagens que, creio, são inclusive surpresa para os próprios norte-americanos. A resistência e o contraditório emergem, revelando a organização e luta dos órfãos do neoliberalismo, que são muitos.
Quem imaginaria uma ocupação de fábrica nos EUA e uma declaração de Barack Obama em apoio? A visita de um bispo ao local, o apoio de deputados... Já imaginaram tal coisa no Brasil? Como se comportaria a grande mídia?
Que tal ainda alguns deputados sugerindo que a população que estava sendo despejada de suas casas praticasse um ato de desobediência civil e resistisse à entrega das chaves? Coisa de revolucionários esquerdistas atrasados e fixados em idéias ultrapassadas, diriam as poucas famílias que controlam revistas, jornais e internet por aqui.
A mídia no Brasil expôs fartamente o acidente com a aeronave da companhia US Airways em janeiro de 2009, que viajava entre Nova York e Charlotte, no Estado da Carolina do Norte. O piloto fez um pouso de emergência no rio Hudson, próximo à Estátua da Liberdade, ninguém dos quase 200 ocupantes se feriu. Moore, em vez de explorar as merecidas homenagens oferecidas ao piloto Chesley Sullenberger, foi ao Congresso Nacional e filmou suas declarações sobre a precarização do trabalho nas empresas de aviação. Detalhe interessante: naquele momento, sem fotografias, o parlamento estava quase vazio.
Até a grata lembrança da figura de Jonas Salk, criador da vacina contra a poliomielite, ganha sentido neste contexto, em função de sua recusa em receber fortuna pela patente da importante descoberta.
O que dizer do esquema que detém jovens por motivos torpes, mas plenamente justificado a partir da privatização e o repasse de recursos públicos ao proprietário da penitenciária? Quanto mais presos, maior o lucro, numa associação virtuosa e direta entre o poder executivo, judiciário e o capital privado. É assim que o capitalismo neoliberal funciona: quanto mais pobreza e delinqüência, mais lucros.
Há também a fábrica que funciona em auto-gestão, participativa, com pequenas diferenças salariais entre os cargos de chefia e os trabalhadores da linha de produção. No Brasil, onde há exemplos interessantes neste sentido, nada disto aparece na telinha. Moore fez o favor de mostrar que, independente de se concordar ou não com esta forma de produção, ela existe e funciona, para a raiva dos ideólogos do neoliberalismo e seus apoiadores caninos.
Não deixe de assistir a película. Observe os íntimos vínculos entre as grandes corporações empresariais do setor produtivo e financeiro e os agentes públicos, operando num ambiente de total promiscuidade, sugerindo que o que é bom para as grandes corporações, também o é para a sociedade como um todo.
Voltamos ao início, e esta é uma questão central: a voracidade do capital, intrínseca a sua reprodução, é a responsável pela explosão da miséria e da pobreza pelo mundo, além da destruição dos recursos naturais. O neoliberalismo fez o favor de aprofundar esta condição. Vivemos hoje o rescaldo da tragédia.
Somente outra forma de organização social, apoiada nas necessidades humanas e não nas necessidades do capital, poderá aplacar o buraco em que estamos metidos. E não me venham dizer que capital e humanidade combinam. A não ser que você seja mais um daqueles que acha que o capitalismo produziu coisas boas, as ruins são culpa dos homens maus. Assim fica fácil de justificar as mazelas da sociedade atual.
Ricardo Alvarez

Geógrafo, é professor e editor do site Controvérsia

sexta-feira, 11 de março de 2011

A centralidade do trabalho



Por Emir Sader

Durante muito tempo as análises críticas do capitalismo promoveram as relações de trabalho a tema central, a partir das próprias análises de Marx, que definem como centrais as relações capital-trabalho nesse tipo de sociedade. Se deduziam, no campo político, consequências que reduziam praticamente as contradições sociais a essas relações que, uma vez superadas, levariam à emancipação de toda a humanidade.

Temas como os de gênero, de etnias, de meio ambiente, seriam resolvidos pela superação da contradição capital-trabalho. Mais além de saber se os países que se assumiram como socialistas ao longo do século XX aboliram essa contradição central (avançaram nessa direção, mas estatizaram os meios de produção ao invés de socializá-los, abolindo ou quase, a propriedade dos meios de produção, mas transferindo-a para uma burocracia estatal e não para os trabalhadores), nessas sociedades aquelas contradições, apontadas como secundárias, sobreviveram fortemente.

Com as grandes transformações operadas no mundo a partir dos anos 80, o mundo do trabalho passou por um processo de total reversão dessa centralidade, seja pela incorporação positiva de outras contradições – como as apontadas, de gênero, de etnia, de meio ambiente -, mas também como uma enorme desqualificação das atividades ligadas ao trabalho. 

Como ressaca daquela centralidade excludente do período anterior, se passou ao seu oposto.

O tema, que era um dos mais abordados na vida acadêmica nas décadas anteriores, passou a ser um entre outros, com interesse claramente declinante. A mídia passou a inviabilizar totalmente as relações de trabalho – tanto o noticiário, quanto a ficção, como as telenovelas, em que o mundo do trabalho praticamente não existe, apenas marginalmente. 

Como interessa às elites dominantes ter as centrais sindicais e os sindicatos em situação de marginalidade de fraqueza, esse objetivo foi levado adiante com afinco. Criaram um mundo em que aparentemente ninguém mais trabalha, quando é o contrário o que ocorre: nunca tantos viveram do seu próprio trabalho. Acontece que as duríssimas políticas neoliberais incentivaram o trabalho precário, promovendo a fragmentação da classe trabalhadora. Nunca se trabalhou tanto, nunca tantos trabalharam tanto, mas em condições heterogêneas, com alto desemprego e subemprego, sem carteira de trabalho, sem poder apelar à lei e à organização sindical.

Mas a grande maioria da humanidade vive do trabalho e para o trabalho. Dedica todo o seu dia a isso, desde que se desperta, passando pelo duro transporte até o local de trabalho, por jornadas pesadas, pelo retorno à casa, processo que no seu conjunto abarca praticamente 2/3 do dia, para descansar, repor minimamente as energias e retornar no dia seguinte.

O trabalho continua sendo a atividade que, de longe, mais ocupa a grande maioria da humanidade. Uma atividade precária, mal remunerada, alienada -em que os trabalhadores, que produzem as riquezas, não decidem o que produzem, para quem produzem, a que preço, etc. -, que é o cotidiano de bilhões de pessoas em todo o mundo.

Desconhecer essa realidade ou subestimá-la, é se situar fora do mundo real das pessoas. Não por acaso as políticas que mais distribuem renda – confirmado pelo processo brasileiro – tem a ver com aumentos de salários, em particular do salário mínimo, de tal forma as atividades de trabalho são centrais para a sobrevivência das pessoas.

Se as atividades humanas não podem ser reduzidas às do trabalho, a realidade é que elas cruzam a vida de praticamente todos: negros, índios, mulheres, idosos, crianças (infelizmente) trabalham. Os empresários, por sua vez, vivem do trabalho alheio.

Por isso as atividades do mundo do trabalho e tudo o que as envolve tem que voltar a ser preocupações centrais dos governos democráticos, dos movimentos populares, do pensamento crítico e de todos os que lutam pela emancipação humana, conscientes que as relações continuam a ocupar lugar central no capitalismo – seus economistas não subestimam isso – e tem que ser contempladas centralmente na construção de um Brasil justo e solidário.