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sexta-feira, 6 de julho de 2012

O dinheiro não é um valor



"Os 'valores' traduzidos em preços têm utilidade imediata, porém permanecem presos aos horizontes das preocupações imediatas"

Por Leandro Konder
Imagine que você acaba de chegar a um lugar onde pessoas conceituadas estão discutindo sobre economia e finanças. Imagine o que aconteceria se você dissesse:
- O dinheiro não é um valor.
Provavelmente, uma onda de protestos criaria enormes dificuldades para você argumentar em defesa da sua tese. Talvez você não consiga nem falar!
A palavra "valor" se presta a uma enorme confusão. Ela engloba tanto os chamados "valores" econômicos como os valores éticos, estéticos, filosóficos, religiosos, humanos em geral.
Economicamente, o valor se traduz no dinheiro. O dinheiro indica o preço, o que a mercadoria está valendo no momento da compra e venda.
O dinheiro é o equivalente universal na esfera das mercadorias. Ele tem desempenhado um papel historicamente importante, tem agilizado comércio, tem viabilizado acordos complexos.
Não tem sentido investir contra o dinheiro ou desprezá-lo. Ele contribui para medir o que precisa ser medido. Avaliações criteriosas dependem de instrumentos delicados e, muitas vezes, dependem da quantificação promovida pelo dinheiro.
O dinheiro chegou a se transformar, como observou Goethe no Fausto, numa espécie de Deus. A maioria das pessoas, implícita ou explicitamente, vice em função do dinheiro. Essa opção lhes parece tão "natural" que ela frequentemente se espantam quando outras possibilidades são evocadas.
Para o comum dos mortais, o dinheiro é o valor dos valores. Se paramos para pensar, entretanto, verificamos que as coisas são mais complicadas do que parecem.
O dinheiro remete sempre a algo quer você pode adquirir com ele, a algo que não é ele, a algo que está fora dele. O poder do dinheiro é grande, mas não é ilimitado. O mundo do dinheiro é o das circunstâncias, que são, por definição, relativas.
O mundo das coisas relativas é importantíssimo, é ineliminável da nossa existência humana. Mas não a esgota.
Todas as culturas, de todos os povos, ao que tudo indica, mostram que os seres humanos necessitam de valores de outro tipo: valores intrinsecamente qualitativos, vividos como absolutos.
Cada cultura faz suas escolhas a respeito do que sejam honestidade, sinceridade, coragem, tolerância, solidariedade, beleza e generosidade. E cada pesoa, em algum momento, faz sua própria avaliação das ações humanas à luz das virtudes e dos valores que nelas se expressam.
É claro que esses valores - éticos, estéticos, filosóficos, religiosos, humanos - também são relativizados quando são vividos, traduzidos em ações históricas. A hisatória modifica tudo, nada escapa a ela.
Tudo se transforma. O que conta, porém, é o modo como se realiza cada transformação. Existem movimentos que se esgotam, conscientemente, nas circunstâncias em que ocorrem; e existem mudanças que plantam ideias com a esperança de que algo delas venha a perdurar.
Se eu for ao encontro de um comerciante de quem quero comprar alguma coisa, é natural que eu leve dinheiro e procure gastá-lo conscientemente. Se quero vender um produto, procurarei obter um bom preço por ele. Seria uma rematada tolice, descuidar de gastos e despesas, ignorar os limites do orçamento, dilapidar perdulariamente o patrimônio,em nome de um discurso esnobe, romântico e demagógico, contra o dinheiro.
O problema não está no respeito à lógica da economia (ou, mais precisamente, das finanças) no território que lhe é próprio: o erro essencial está na aceitação de uma "geleia geral", que mistura os valores, dissolve os conceitos e mistura as ideias. "Valores" mensuráveis, circunstanciais, que tentam se fazer passar por valores essenciais, duradouros, tornam-se trapaceiros, impostores.
Os "valores" que podem ser traduzidos em preços têm uma indiscutível utilidade imediata, porém permanecem presos aos horizontes das preocupações imediatas. Causam graves distorções ideológicas e sérios danos morais, quando interferem no âmbito dos autênticos valores (sem aspas). Desrespeitam os valores humanos que não estão à venda.
A expansão exagerada dos domínios do dinheiro tende a impedir que os seres humanos reconheçam a demanda - diversificada mas permanente- dos valores que as culturas particulares vão tecendo e com os quais vai se constituindo uma expressão infinitamente universal da humanidade.
O dinheiro não substitui esses valores. E, quando se pretende usá-lo para substituí-los, ele os destrói.
Um exemplo disso se encontra na argumentação do personagem que dá título ao magnífico O sobrinho da Rameau, de Diderot. Quando procura convencer seu interlocutor de que o dinheiro podia ser o fundamento de todos os valores, o "sobrinho" só consegue demonstrar que essa convicção resulta em completa insensibilidade ética, em cinismo crasso. "O dinheiro é tudo. O resto, sem o dinheiro, não é nada".
As discussões atuais a respeito da solidariedade às vítimas do maremoto na Ásia nos fazem recordar esse texto literário de Diderot, que Goethe, Hegel, Marx e Freud consideravam uma obra-prima. O sobrinho de Rameau é uma clara demonstração de que, por mais importante que possa vir a ser, o dinheiro não é um valor.
Tragédia na Ásia
A "parcimônia" da ajuda do governo dos Estados Unidos às vítimas do maremoto na Ásia levou alguns dirigentes do Estado mais rico do mundo a desenvolver uma argumentação que girava em torno de números. Qual seria a cifra adequada à extensão da catástrofe? Como deveriam ser feitos os cálculos? Com base no número de mortos? E deveriam ser incluídos nos cálculos também os desaparecidos?
Foi constrangedor ver um funcionário da ONU tendo que puxar as orelhas do governo Bush. E foi mais constrangedor ainda ler depopis na manchete de um grande jornal norte-americano a autocrítica: "De fato, temos sido avarentos". Nas semanas que se seguiram, a doação aumentou, e um representante do Estado avarento admitiu que o governo Bush estava procurando melhorar sua imagem entre os mulçumanos.
Configurou-se, pois, uma situação criada por uma catástrofe natural, logo imposta como um desafio colossal a todos os que podiam intervir para evitar que a tragédia se alastrasse. Os olhos do mundo se fixaram, sobretudo, nos mais poderosos. Os norte-americanos se viram, de repente, no centro do palco.
Num primeiro momento, os indivíduos que haviam se tornado decisivos para ajuda às vítimas trataram de definir sua intervenção por meio de "valores" (dólares). Em seguida, o critério monetário foiu completado com conveniências políticas de imagem (propaganda).
Valores éticos, óbvios, de solidariedade humana, não apareceram no discurso das autoridades estadunidenses durante as primeiras semanas da calamidade.
Aparentemente, não foram considerados necessários. O que confirma o esvaziameno que estão sofrendo.

Leandro Konder é filósofo.

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